sábado, 26 de dezembro de 2009

LABIRINTO

Meu nome é David. Na Faculdade de Medicina era mais conhecido como Chili por causa da minha pele avermelhada, herança dos meus avós que eram irlandeses. Mas nem a Faculdade e nem meu apelido vem ao caso agora. Não agora.

Durante muito tempo exerci a função de psiquiatra - o verdadeiro orgulho da família, diga-se de passagem. E, ao contrário daquilo que algumas pessoas imaginam, não existe nada mais complexo do que o cérebro humano. Vejo-o como um vasto labirinto escuro, uma grotesca casa de espelhos; talvez aqueles espelhos de parques de diversões, que além de nos confundir, nos deixam abobalhados quando imaginamos que estamos chegando a algum lugar e percebemos que ainda mal nos deslocamos.

Estava mergulhado naquilo que chamamos de processo e não me lembro de ter algum dia trabalhado tão a finco em um paciente. Nem mesmo no caso do Homem-Machado, um indivíduo que, sem motivo aparente, chacinara toda a família com um machado de cortar lenha. Depois de algum tempo o homem se suicidou com o próprio lençol dentro da sua cela na penitenciária de segurança máxima. Caso interessante...

Mas nem de longe, tão envolvente quanto o caso dela. Uma mulher que imaginava ser uma espécie de escolhida dos deuses.

Tentarei simplificar o possível, ao que chamo hoje de minha “viagem alucinante”.

Ela não era só dona de todo o charme que alguém poderia imaginar, não. Havia algo mais... Havia um mundo estranho oferecido atrás de seus olhos estranhamente negros. Seu corpo voluptuoso era algo como que tirado do Olimpo. Sua boca generosa raramente sorria; e quando sorria parecia um convite. Adorava ver os seus cabelos espalhados em meu divã.

Em uma das nossas sessões fiz uma simples pergunta que mudaria todo o rumo da minha vida. Perguntei-lhe o que mais lhe causava medo. E ela me respondeu que só temia:

- O óbvio!!!

- O óbvio? Seja mais clara.

- As pessoas acreditam somente no óbvio. Acreditam somente naquilo que seus cérebros podem aceitar. Nada é óbvio. As pessoas mudam. As circunstâncias mudam. E as pessoas são capazes de tudo se movidas por amor ou ódio.

- Se você sabe tudo a respeito de tudo, o que faz aqui no meu consultório?

- Pago para provar que você não sabe nada. Você somente conhece aquilo que lhe convém. Só aceita aquilo que é, dentro dos padrões, algo denominado normal, correto. Você nunca sentiu vontade de se matar? Nunca se afastou a tempo antes de matar alguém que você amasse? Nunca ouviu os tambores soarem dentro de si como numa festividade de morte? Nunca se sentiu pronto para cair sobre quatro patas e uivar alucinadamente para em seguida correr mais velozmente do que o próprio som?... São coisas que vocês têm medo de aceitar. Medo de ouvir o grito que deixam estancados dentro da garganta. Medo de acreditar naquilo que não é óbvio. Então, quem somos nós para punir um assassino? Ele terminou aquilo que temos medo de terminar. Ouviu o que temos medo de ouvir: O GRITO. Você nunca se envergonhou de si mesmo? Nunca se lamentou por algo que fez, que não era dentro dos padrões, algo denominado correto?

– Quem é você?

– Sou o seu desejo.

- Escute. Suponhamos, apenas suponhamos que você esteja certa. Diga-me então o que devo fazer para me aceitar. Você tem razão. Eu não me aceito. Não aceito em harmonia o bem e o mal que habitam dentro de mim. Não aceito o profundo bem e sumo mal, como você mesma já disse antes. Tento esquecer certas coisas que já fiz antes, mas não posso. Tampouco posso aceitar o lobo que habita dentro das minhas entranhas. Gostaria de recomeçar, viver em harmonia comigo mesmo, fazer tudo de modo diferente. Mas não tenho equilíbrio. Um lado sempre grita mais alto que o outro.

Agora eu havia me transformado em paciente, mas nada mais importava. Não importava realmente quem era quem naquele jogo do inferno...

Sentia lágrimas escorrendo em minha boca. Um gosto salgado, quente. Lembrei-me uma vez quando engoli a água do mar, numa tentativa adolescente de mostrar para o meu irmão mais velho, que se ele podia ir até a balsa localizada a alguns metros da costa, eu também podia. Tentativa fracassada...

Ela me colocou em seu colo, me ofereceu o seu corpo quente, sorriu e disse:

- Não posso ajudá-lo, David. Não sou a vida. E somente ela poderá fazer alguma coisa a você. Não cabe a mim intervir.

E ela se foi, deixando atrás de si aquele cheiro agridoce junto aos meus soluços.

No caminho de volta pra casa parei em um bar e consumi muito mais que poderia suportar, como se na garrafa houvesse a solução para o meu problema; como se dentro da mesma garrafa existisse ao menos uma resposta para as perguntas que eu precisava fazer...

Eu a desejava, eu a amava - antiético, é claro. Mas eu realmente desejava que toda a ética e ciência do mundo fossem de mãos dadas para o inferno. Eu a desejava como um condenado deseja a guilhotina.

Nunca mais a veria. Nunca mais ouviria a sua voz rouca me dizendo palavras certeiras e me revirando a alma ao avesso. Isso talvez fosse bom. Eu poderia voltar a ser o mesmo covarde de sempre ruminando minhas idéias limitadas e considerando-me um gênio da racionalidade.

Uma mão gelada tocou meu ombro. Virei-me bruscamente. Minha voz morreu na garganta. Ela estava na minha frente: o olhar passivo, os lábios entreabertos. Tudo o que consegui dizer após segundos que pareceram durar horas foi:

- Você voltou?

- Voltei para lhe dizer que você deve aproveitar o tempo que lhe resta. Voltei porque você me deseja. Alguns me desejam, outros me temem. Alguns me vêem assim como você me vê: bela, desejável... Outros me vêem como uma velha amaldiçoada... Tenho vários nomes, desde a indesejável até a inevitável. A vida lhe oferece chances. A vida é curta. Passageira. A morte, não. Você deve viver a vida de forma mais suave, sem cobranças, sem perguntas, sem medos e sem violações. Se você não parar imediatamente de se punir, sua estadia será amarga. Não julgue. Não se machuque. Saiba que até mesmo o artista, o pintor, o músico, o poeta, têm suas almas dilaceradas. Talvez para eles a vida até seja mais cheia de perguntas que a sua própria vida de Homem da Ciência. Eles amam e esta é a condenação. Se as pessoas pararem de amar serão condenadas da mesma forma, mas será infinitamente pior. Sem amor, não há inspiração. Sem amor, não há vida. Quando todos pararem para aceitar o inaceitável de forma mais suave e redescobrirem que tudo na vida é passageiro, exceto o amor, talvez eu deixe de existir. Quando as pessoas desarmarem seus arsenais eu me despedirei dos meus irmãos: a fome, a dor, a ambição, o medo e a doença. Restarão apenas a vida e a luz... Alguns imaginam que a morte acontece quando o corpo pára e o cérebro apaga, mas quantos mortos ainda caminham sobre a Terra? A morte nada mais é que a falta de esperança, a falta de vontade de viver. Eis aí mais uma das intermináveis faces encobertas da morte. A mudança deve começar dentro de cada um. De você agora... Como disse antes, infelizmente não sou a vida. Mas você ainda vive - portanto, mexa-se, tente, tente quantas vezes for necessário tentar. Nunca desista de você. Aceite-se, ame-se, respeite-se da forma que você foi feito. Aprimore o seu lado bom e respeite seu lado denominado ruim. Lembre-se: é perigoso denominar o que é bom ou ruim, pois o que é bom para você, pode ser ruim para o outro e vice-versa... No momento certo eu voltarei. E quando voltar espero não parecer tão desejável. Apenas aceitável...

Suas últimas palavras soaram muito distantes. Eu estava caindo literalmente no sono. Era como se meu cérebro recusasse aceitar tudo aquilo como realidade. As limitações do cérebro, claro.

Acredito que ela desapareceu. Provavelmente por causa da existência de algumas coisas que nosso cérebro simplesmente rejeita.

Prefiro acreditar que foi um sonho; que eu a queria tanto, que acabei sonhando com algo que se assemelhasse com a realidade. Poderia ter sido imaginação minha; apenas um desejo...

Voltei a tocar violino. Há anos ele estava esquecido dentro do armário. Há anos, eu havia me esquecido do prazer que ele me oferecia.

Nem tampouco me choquei, ao sentir a necessidade de adotar uma criança, que hoje está entre as coisas que mais amo no mundo. Meu pequeno Ed...

Na verdade o que me choca é me olhar no espelho e ver meus cabelos brancos. E sem conseguir esquecer àquelas noites em que estive com ela.

Julio Carrara 

Nenhum comentário:

Postar um comentário