quinta-feira, 10 de maio de 2012

REPRESSÃO


Na última segunda-feira fui fazer uma visita para Tatiana Belinky (há um bom tempo que não desfrutava do prazer de sua companhia) e é impossível ficar com ela por um curto espaço de tempo. Só quem já foi comigo até lá, sabe o que estou dizendo. Além de ser um poço de sabedoria, é extremamente generosa. E não fala só dos seus projetos - sim, ela continua escrevendo alucinadamente, sentada em sua poltrona num canto da sala, onde instalou a sua escrivaninha - mas quer saber a respeito dos seus.
Cercada de papeis, canetas, lupas e com sete gatos e três cachorros que a rodeiam, entre um cafezinho sem açúcar e outro (ela toma uma canequinha de água antes e depois do café, segundo orientações médicas), e comendo ameixas secas, vai criando suas histórias que encantam, não só as crianças, mas jovens e adultos também. E ainda encontra tempo para dar palestras em escolas e outras instituições.
Devo grande parte da minha formação como artista e educador à ela. Relembramos, com carinho, como nos conhecemos - há 12 anos atrás - os textos que montei de sua autoria, as crianças e adolescentes que integraram o elenco das montagens e que hoje estão adultos e os prêmios recebidos. 
Falamos sobre diversos assuntos, principalmente sobre memória e sobre a hipocrisia do "politicamente correto", sobre o fato de quererem poupar as crianças em relação à morte e outras crueldades da vida. Já temos exemplos de crianças que foram poupadas e hoje são adultos imbecis, incapazes de fazer algo que valha a pena.  
Já pararam para pensar que um bebê nasce livre e quando começa a ser educado,  perde toda a sua essência? É um tal de: "NÃO FAÇA ISTO, NÃO FAÇA AQUILO, SENTA DIREITO, NÃO COMA TANTO, NÃO PEIDE, NÃO ARROTE, NÃO SUJE A ROUPA, ISSO É CONVERSA DE GENTE GRANDE,  SE FALAR PALAVRÃO VOU LAVAR A SUA BOCA COM SABÃO... e por aí vai. 
E tudo o que é proibido, dá mais vontade de fazer.  
Hoje as coisas chegaram num ponto tão critico, que não faço a ideia de como será daqui há dez anos. O que mais vejo atualmente é aquela mãozinha ridícula, no meio daquele círculo de PROIBIDO. 
- Quer beber? Foda-se! Quer fumar? Foda-se! Quer usar drogas? Foda-se!  Quer dar o cu? Foda-se! 
Cada um tem que ser responsável pelos seus atos, desde que não coloque em risco a vida dos outros.
Estou dizendo essas coisas porque durante a apresentação de O Porta-Malas na Virada Cultural, no CEU Quintas do Sol, a organização me pediu para que eu "pegasse leve" em relação aos "palavrões" que estão presentes no texto, porque crianças e adolescentes estariam na plateia.
"Pronto, lá vem a censura.", pensei.
Se um cara está trancado em um porta-malas, na hora da raiva o que ele vai dizer:
- Droga ou porra?
É óbvio que "porra".
Entrei em cena, e pensei:
- Vou soltar o "filho da puta". Se a plateia ficar assustada, eu corto o resto, se não, segue como está.
Se tem alguém que conheço bem, são crianças e adolescentes. A minha vida inteira eu trabalhei com eles.  E dito e feito. Eles não se chocaram e o texto foi feito como estava escrito.  É evidente que os "palavrões" não estão lá de uma forma vulgar. Se estivesse, eu nem encenaria a peça. 
E depois cheguei para a organização do evento e disse que não consegui tirar os palavrões, porque se tirasse, iria me perder no texto. É óbvio que isso foi uma mentira deslavada. Mas me disseram o que eu já estava careca de saber: o público não ficou chocado. 
É evidente que não.  Eles ouvem isso a todo o momento, em canções de funk - aí sim num contexto vulgar - e nas ruas.
Certa vez, no meio da minha aula de Artes, no 2º D do Ensino Médio, durante uma atividade e com a classe em silêncio, Emilly, uma das alunas, encontrando dificuldade na tarefa, falou:
- Eh, porra!
Apesar de falar para si, a classe toda ouviu. E falei bem sério:
- Eh, boca suja...
Todos achavam que eu iria dar um esporro na aluna, mas emendei, ainda sério:
- ...do caralho!
Aquele "Eh, boca suja do caralho", causou um frenesi na galera, que riu imediatamente, pois  jamais imaginavam que um professor dissesse aquilo dentro de uma sala de aula.
Eles perceberam que eu não estava num pedestal, mas me igualava à eles. E nunca me desrespeitaram.
Quando criança,  minha mãe me chamava a atenção quando dizia um:
- Caralho!
Aí como sabia que não era para falar, eu ficava falando para mim:
- Caralho, caralho, caralho, caralho, caralho...
Agora, se tivesse permissão de falar, eu diria:
-Caralho!
E pronto. Não falaria mais. Pelo menos, não naquele momento.
Se as pessoas encarassem as coisas com mais naturalidade, sem hipocrisia e não fossem tão reprimidas pelo sistema, teríamos, com certeza, um mundo melhor.


Julio Carrara 

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