quarta-feira, 9 de julho de 2014

O ATOR

de Chico de Assis 
dedicado a Lima Duarte 
para ser dito em teatros, bares e outros locais menores. 

- Então você tem curiosidade em saber como é o ator por dentro? Eu digo. 
O dentro está por fora, o fora está por dentro. Entenderam? Trato simples para um ator. Jogar a vida de fora pra dentro e depois devolver a mesma vida botando de dentro pra fora. Entre uma coisa e outra, isso que alguns chamam de arte. Eu prefiro artimanha. Mas quando o ator começa achar o seu personagem o mundo fica bem diverso. Vamos por passos: primeiro é preciso deixar de ser. 
- Isso mesmo: deixar de ser, desaparecer, espiantar diante de si e dos outros. Tomar-se invisível. Trocando em miúdos: SER NADA. Porque no nada, tudo cabe. Se você já está lotado de tantas emoções e idéias, dentro não cabe mais coisa alguma. É preciso abrir espaço no nosso eu para o que virá. Porque aquele personagem que virá não será nem maior nem menor do que você. Terá seu exato tamanho. Fácil não é? Alguém pode pensar que um ator veste um personagem como veste um terno. 
 - Não, não é assim. Isso não é a arte de representar. 
Temos que ir aos poucos, com cautela, vendo através da mente ainda nublada, os primeiros tratos de sentimentos e gestos do personagem. Daí começa a surgir uma linha mais forte e marcada, como uma espécie de foco que vamos buscando cada vez com maior nitidez. São formas que dançam a nossa frente, desordenadas, uma orgia de jeitos e facetas disparatadas. Um, que não nós, ficaria doido com o embrulho. Mas com este leite fomos criados, nós que somos atores. 
É deste caos que vai nascer o personagem. Primeiro bruto e mal acabado como um calunguinha de barro daqueles de mestre Vitalino. Bruto, mal acabado, mas já muito belo. Depois, as formas mais delicadas vão se desenhando suave e constantemente durante o processo. Tudo montadinho, como um jogo vivo, como pescar no rio da própria alma e encher o picuá de: detalhes de vida; relances de emoções; tratos de angústia, visões de sonhos. Rostos que vimos uma vez... Meia vez... Vez alguma. Apenas produto da invenção de um ser. E assim vamos vestindo de vida esse prodígio. Este ser nocivo, que nos tira a calma.
Dorme conosco, acorda conosco, come e bebe conosco e até ama e odeia juntinho com a gente: a pele ali relando a pele. É um trambolho desajustado que acaba por se acomodar com a gente. Atrevido, nos mostra o próprio rosto para que não tenhamos dúvidas que ele é ele; e não nós. 
- Ah, que caminho de aventura, seres tu mesmo e outra criatura. Ah, que loucura chorar e rir, por si mesmo e pelo estranho que lentamente tiraste da vida e do sonho para a realidade deste. 
Juro! Só o ator, isso só o ator pode sentir. E chega o momento em que tudo fica como que, pronto. O personagem domina, vem à tona como um monstro abissal. Reinventando a realidade. E és tu quem o soltas e seguras como um cavaleiro num rodeio-mortal. Aí já não vives para ti mesmo e sim para ele. Acordas cedo e dormes tarde: para ele. Recebes aplausos, flores e cumprimentos; mas são para ele. Você ator, é apenas o humano intermediário. Quando te encontram na rua chamam pelo nome dele e és obrigado a responder. E, se és ator, eu te juro que é questão de tédio. 
Às vezes a gente pergunta: 
- Mas porque não separam o criador da criatura? 
O chato, que... às vezes até nós mesmos nos confundimos. Às vezes eu não sei se sou EU mesmo ou os personagens que crio. Eu fico tão ligado a ele; que palavras minhas passam como dele e as dele como minhas. E chega um tempo que não sei mais onde termina a mão dele e começa meu próprio braço. E perco a noção. De qual coração são as batidas que sinto no peito? Do meu... do dele, não sei. 
Aí, chega o tempo de quebrar o espelho. O personagem chega ao fim do seu tempo de vida. Começa a morrer e não podes morrer com ele. Tens que desfazer o já feito. Desinventar o ser e dividir o coração no peito. No começo, é como aprender a andar e falar de novo; como se tivessem te cortado pela metade. Não sabes mais viver uma vida só. Sua íntima essência de ator requer a duplicidade. 
- Que monotonia, ser eu mesmo, noite e dia. 
Então eu fico confuso. Conto histórias, invento mentiras, minto realidades, misturo tudo e jogo no sonho e jogo o sonho na vida e a vida. Discuto futebol, vou às corridas de cavalo, converso com meus cães, bebo com os amigos. Mas fujo dos espelhos. Pelas noites fico rodeado de antigos fantasmas de personagens mortos que me assombram com lembranças. Tantas vidas que viveram, tantas mais que viver. Então finjo que estou feliz. Engano que estou triste. Mas na verdade, estou só incompleto. É isso: meia vida e meia morte. 
- Mas quando se é ator a vida segue de outro jeito. Cai na tua mão outro papel. Passas os olhos e alguma coisa te fisga como um anzol. Tentas fugir arrastando a linha, mas é tarde. Estás novamente pescado. 
Então eu te digo que o primeiro passo é, deixar de ser. Depois deixar bater baixinho dentro de teu peito o coração daquele personagem que lentamente se forma e te deforma. 
- Vocês querem saber o que é preciso para ser ator? 
Eu digo: são olhos que chorem lágrimas duplas. Às vezes um olho que ri enquanto o outro chora. Olhos que olhem a um tempo para fora e para dentro. É preciso a boca treinada para separar o sabor da tua lágrima do gosto da lágrima criada, mas principalmente, é preciso manter a alma ensolarada e ampla para ser um DEUS dentro de si. Para poder jorrar para fora com luz, angústia e talento, com toda a voz, o comando:
FAÇA-SE O HOMEM!

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