quinta-feira, 10 de julho de 2014

NORBERTO DE HOLANDA CAVALCANTI, VELHO NÔ, QUE RESIDIU NA CIDADE DE CARUARU, PERNAMBUCO, EM 1927

— ESTÁS aí, filho? — perguntou o velho. 
O rapazinho não respondeu. 
Deserto, sob a madrugada, o Largo da Cadeia; nenhuma janela acesa, ruído nenhum, apenas o vento frio — carregado de resina e orvalho — agitando a folhagem dos fictís. 
— Filho? Por que não fala com teu velho pai? 
Sentado rente à parede, o cachorro ao lado, dormindo, Almiro disse, por fim: 
— Estou aqui. Quê é que o senhor quer? 
A janela gradeada da prisão ficava metro e meio acima da cabeça de Almiro. Mas a voz do velho parecia vir de longe: 
— Tua mãe já sabe? 
— Disse ao senhor há pouco que ela sabe — respondeu o rapaz, com certa má vontade. 
— Ficou danada? 
Desta vez não teve resposta. Insistiu: 
— Sei que amanhã a velha vai dizer muitas e boas. O inferno de sempre. Talvez, até, me dê umas correadas, como aconteceu a semana passada. Não quero nem pensar. 
Tudo acontecera por causa da rapariga Maria Mil e Duzentos. Gente muita na Pensão Riso da Noite: boêmios, funcionários da Great Western, caixeiros da Rua do Comércio, as mais cobiçadas rameiras da Rua das Mágoas — Nila Barra Branca, Joaquina Pão Doce, Júlia Peixe Boi, negra Filó, Zefa Romana, Lica Maleira, Amélia Taquara. Cerveja à vontade, todo mundo dançando ao som da sanfona de Natalício. Foi quando o clarinetista da Banda Musical Nova Euterpe, Eleutério de Souza, chegou acompanhado da mulata Maria Mil e Duzentos. Vendo-a de vestido vermelho com bolinhas brancas, laço de fita na cabeça, cheirando a extrato comprado na feira, Norberto de Holanda Cavalcanti — mais conhecido como velho Nô, — já embriagado àquela hora, deu-lhe uma palmada na bunda: 
— Estás um pirão, menina. 
O clarinetista não gostou: 
— Mulher que está comigo não serve de debique para ninguém. 
O velho, alto e gordo, ergueu-se, garrafa na mão: 
— Se é homem, venha. 
Armou-se a confusão, com mulheres gritando, cadeiras derrubadas, o sanfoneiro Natalício se retirando às pressas para a cozinha; o pederasta Pedro Contente, garçom e alcoviteiro, agarrado ao braço do boêmio Zuzinha, dando gritinhos: 
— Segurem o velho! Segurem o velho! 
Chamado às pressas na Pensão de Catarina Trombone, na casa ao lado, onde costumava fazer ponto todas as noites de sábado, cabo Queiroz deu voz de prisão ao velho Nó: 
— Me acompanhe. 
Naquele mês de dezembro, era a terceira vez que Norberto de Holanda Cavalcanti pegava cadeia. Alguém correra à Lagoa da Porta para avisar à mulher e ao filho do velho. Arrastando a perna direita martirizada pelo reumatismo, Dona apareceu à janela, na mão esquerda o candeeiro de querosene: 
— Quem é? 
— Seu Nô foi preso inda agorinha mesmo — informou o desconhecido. — Armou uma confusão dos diabos lá na Rua das Mágoas. 
O rosto de Almiro surgiu por trás da cabeça da mãe, como uma aparição que subisse de dentro da luz do candeeiro: 
— Vou falar com o delegado. 
Vestiu-se correndo e, acompanhado de perto pelo cachorro Nero, atravessou a linha férrea (a máquina do trem cargueiro que, de madrugada, rumaria para o sertão, fazia manobra no giradouro), seguiu pela Rua da Matriz em direção à Cadeia Pública, no Rosário Velho. 
O delegado não estava e o cabo Queiroz o recebeu com os mesmos desaforos de outras vezes: 
— Seu pai não toma vergonha, é um cabra safado, bêbado descarado que vive por aí plantando desordens. Qualquer dia destes deixo ele mofar um mês no xilindró. Pra tomar tino de gente. 
— Cabo — começou Almiro, que tinha quinze anos, a voz chorosa. — Solte o pobre do velho! Mãe ficou em casa, chorando. 
— Quero conversa não; só deixo ele ir quando amanhecer o dia. Almiro sabia que seria inútil qualquer pedido. 
Foi sentar-se na calçada do oitão, ao pé da janela da cela onde, tinha certeza, o pai curtia sua cachaça. Como se adivinhasse a proximidade de Almiro — não era sempre assim que acontecia? — o velho Nô, após um acesso de tosse, gritou: 
— Estás aí, filho? 
O céu começava a clarear para os lados do rio Ipojuca. Era na cidade de Caruaru, no ano de 1927. Frio, apesar de dezembro. Carregados de caçuás. cavalos e jegues surgiram no começo da rua a caminho da feira semanal. Os homens montados nas garupas; as mulheres a pé, cabeças e ombros envoltos em grossos xales de lã. Cheiro de mato. Primeiros pássaros riscando o céu. 
— Filho? 
Cabeça curvada sobre os braços apoiados nos joelhos, Almiro abriu os olhos, resmungou qualquer coisa e afastou o cachorro que dormia em cima de seus pés. 
— Filho? Ainda estás aí? 
O rapaz estava com raiva. Quando seu pai tomaria jeito na vida? Quando deixaria de se meter com raparigas e cachaça, jogo do bicho e briga de galo? Quando arranjaria uma ocupação decente? Quem sustentava a casa era a mãe, pobre coitada, varada de reumatismo e, apesar disso, de pé o dia inteiro, fazendo a comida, lavando roupa para as famílias da Rua da Matriz, criando galinhas para vender nas feiras de sábado. 
— Filho? 
Almiro, de repente, teve uma pena enorme do pai. Perdoava-lhe os erros. Sofria pela sua prisão naquela cela fria de chão de cimento, paredes úmidas, sem um colchão sequer para repousar o corpo velho e gasto pelas farras. 
— Que é, pai? 
— Ainda bem que você está aí, filho. Pensei que tivesse ido embora, me deixando sozinho. Tossiu: — Tenho tanto medo de ficar só! 
— Estou aqui, pai. Espero o senhor ser solto. 
— Obrigado filho, você é um bom menino. Ao cabo de uns cinco minutos, tornou a falar: — E sua mãe, hein? Que é que aquela peste velha vai me dizer? Sofro só de pensar nos desaforos que vou ouvir. Mas note bem: desta vez, se ela vier com aquela história de me dar correadas, vou reagir. Arrebento aquele corpo já quebrado pelo reumatismo. 
Uma semana antes, somente porque surrupiara alguns tostões do pires colocado diante do santuário da casa, Dona partira para cima dele de correia e palavrões. De nada adiantara dizer à mulher que apenas tomara emprestado a São José um dinheirinho à-toa. De nada. Ao mesmo tempo em que lhe metia correadas, injuriava-o aos gritos: 
— Velho safado, ladrão de santo, excomungado. Pra completar tanta miséria, só falta mesmo tu roubar cego de feira, desgraçado. 
Gênio de cão daquela mulher. Por uma coisinha de nada, virava fera. E dizer-se que, em outros tempos — nos bons tempos da Rua da Perua, em Belo Jardim — fora bonita, a mais bonita rapariga da zona, quando a conhecera e a amara com todo o amor que seu coração podia dar a alguém. Nô escarrou no chão. Metendo a mão no bolso, não encontrou cigarro. Por que não amanhecia logo? Estava cansado, todo o corpo era uma dor só. Ainda por cima, aquela secura na goela, vontade desesperada de virar um líquido qualquer, um trago de aguardente, na pior das hipóteses um coco d'água. 
— Filho? 
Almiro pegara no sono novamente. Nô recordava o filho, pequenino, brincando na rua. Tinha-lhe grande amor e sabia que ele o amava também, apesar de tudo. É verdade que não o via muito, pois estava sempre viajando de cidade em cidade, um dia em Pesqueira, outro em Rio Branco, sem pouso certo, arranjando e perdendo emprego, mas, onde estivesse, metido em bebedeiras com amigos feitos às pressas, irremediavelmente preso a qualquer rabo-de-saia que lhe surgisse pela frente. Vez ou outra aparecia em Belo Jardim, com os braços carregados de presentes para Dona e Almiro. Botava o menino no colo, falava-lhe dos lugares por onde havia andado, das brigas em que se metera, exagerando muitos nos detalhes, menos pelo desejo de contar vantagem que pela necessidade interior de colorir cada episódio com os recursos da imaginação. 
Dois ou três dias depois, no máximo, dizia a Dona que precisava partir. 
— Me prometeram uma boa colocação em Vitória de Santo Antão, mulher — falava. Embora soubesse que Dona não acreditava, partia satisfeito, prometendo voltar o mais breve possível, pois já estava em tempo de pensar na educação do menino. 
Numa dessas vindas a Belo Jardim, Almiro, que já estava com dez anos, perguntou a Norberto de Holanda Cavalcanti: 
— Pai, por que os meninos da rua me chamam de filho de rapariga e nunca querem brincar comigo? 
Nô não respondeu logo. Subira-lhe o sangue à cabeça e teve um começo de tontura. Respirou fundo e afagou a cabeça do filho, dizendo-lhe, entre lágrimas que procurava esconder: 
— É porque eles têm inveja de você, Almiro. Escute o que vou dizer, guarde isso para sempre: rapariga é a coisa mais linda do mundo. 
Em 1927, obrigado a regressar a Belo Jardim e à mulher — uma febrezinha noturna vinha consumindo seu organismo havia já vinte dias seguidos — lembrou-se da pergunta que o filho lhe fizera dois anos antes e, após longa conversa com Dona, decidiram os dois mudarem-se para Caruaru, cidade mais adiantada, com melhores possibilidades de vida, onde ninguém os conhecia, aí podendo levar existência sossegada, sem que a maldade humana os fizesse lembrar o passado. Já estava impaciente: — Filho? Almiro despertou com o trote de um cavalo em disparada na direção da Rua do Comércio. Abriu os olhos mas tornou a fechá-los por causa da claridade. Amanhecera e o largo começava a movimentar-se. — Filho? — Sim, pai. — Não está na hora de me soltarem? 
— Sei não, pai; quem sabe é o cabo Queiroz. 
— Então, vá chamar a atenção desse desgraçado. Vá logo. 
Almiro rodeou o prédio, subiu a pequena escada de tijolos que dava para o compartimento principal da cadeia. Sentado num tamborete e recostado na parede, pernas estendidas sobre uma mesa, papéis desarrumados, tinteiro sem tinta e caneta sem pena, cabo Queiroz roncava. 
— Cabo? — chamou, timidamente, o rapaz. 
O homem virou-se, mas não abriu os olhos. 
— Cabo... 
Primeiro, espreguiçou-se; depois coçou a cabeça e fez uma careta. Por fim: 
— Que diabo você quer, menino?
— Pai, seu cabo... 
— Que tem o peste do velho? 
— Solte o pobre, seu cabo. 
Cabo Queiroz bocejou longamente. Erguendo-se, pegou o coco, meteu-o na jarra para apanhar a água, que bebeu, deixando-a escorrer pelo queixo, a molhar-lhe o paletó. 
— Está bem. Vou soltar aquele gôta-serena. Mas, veja lá: da próxima vez, ele vai apodrecer aqui dentro. Em seguida, foi abrir a cela: — Dê o fora, velho; suma da minha frente. 
Gordo, alto, barba enorme, branca, cobrindo todo o rosto, cabelos em desalinho, Norberto de Holanda Cavalcanti — velho Nô para todos — deixou o cubículo, esfregando as mãos, boca escancarada num sorriso sem dentes: 
— Com os seiscentos, já estava com a bunda doendo. Êta chãozinho duro e frio. 
— Vá-se logo — gritou cabo Queiroz. 
Almiro agarrou o velho Nô, carinhosamente, pelo braço. 
— Vamos, pai. 
Já na rua, Nô parou um instante para aspirar o ar gostoso da manhã, viu os ficus benjamins iluminados pelo sol nascente, as casas com as janelas abertas, gente, cavalos passando. 
— Manhã bonita, filho! 
E, alisando os cabelos alourados de Almiro: 
— Vamos dar uma chegadinha até ali na bodega do Viana. Estou doido por um trago. 


A LAGOA DAPORTA — depois da linha férrea — casa de porta e janela, salinha de frente, pobre, porém bem arranjada, com quatro tamboretes, uma cadeira de balanço, aparador coberto com pano rendado, dois jarros de barros comprados na feira, cheios de flores de papel, retratos de santos nas paredes, cortina de chita na janela, a gaiola do azulão suspensa da esquadria. Do terreiro se avistava o Monte do Bom Jesus, bem como a igrejinha, o mirante e o cruzeiro. Voltada para esse mirante, ao cair da tarde, Dona — cinqüenta e dois anos, embora parecendo uma velha e por velha Dana sendo chamada — fazia suas orações e pedia a Deus pelo filho Almiro, cujo pai era um mau exemplo. Nô não tinha mais jeito, sabia ela, como jeito não tinha mais aquele reumatismo — herança dos homens — que dia a dia lhe consumia as carnes e as últimas energias. 
Além do mirante, a cêrca-viva dos aveloses seguindo a linha do trem, a cúpula de alguns túmulos do cemitério de São Roque, o pântano que gerava as muriçocas. Finalmente, as outras casinhas pobres da rua, casas mais pobres que a sua, de chão batido, habitadas por criaturas envelhecidas antes de tempo e crianças barrigudas, catarro escorrendo do nariz, rosto sempre sujo, assustadas. Dezembro passara com algumas chuvas fortes anunciadoras de bom inverno. Em janeiro, exatamente no dia 18, quando Dona aniversariava, Nô apareceu em casa com um presente. Deixou-o escondido numa moita à margem da cacimba, nos fundos do terreiro e, em seguida, foi procurar a mulher para anunciar a boa nova: 
— Não me esqueci dos seus anos, minha velha. E sabe o que comprei? Fez uma pausa, ante o espanto da velha Dona: — Quero que adivinhe. Só lhe adianto uma coisa; é presente que vai trazer fortuna pra todos nós, principalmente para você e o menino, pois sou homem sem vaidades, nada quero para mim, apenas para os meus. 
Voltou ao terreiro e apanhou o embrulho. Ao lado de Almiro, a mulher continuava sem entender. 
— Veja só — disse ele, desmanchando o embrulho. — Um galo de briga! Vamos ficar ricos com este bichinho. 
Dona encostou-se à parede, com medo de perder os sentidos; Almiro afastou-se para o interior da casa adivinhando o que iria acontecer. 
— Que tal, minha velha? — perguntou Nó. Já sentia a tempestade no ar: — Não é mesmo uma lindeza?
Refeita do golpe, à primeira coisa que Dona fez foi correr até o quarto, indo direto ao baú de couro onde guardava seus pertences mais queridos. Abriu-o, apressadamente, procurando, entre os retalhos de chitas, a caixinha de madeira, esconderijo de suas economias. Achou-a e destampou-a: vazia, como previra. Quando voltou à sala, Noberto de Holanda Cavalcanti havia desaparecido. Dona correu ao terreiro. Ele também ali não estava. O galo de briga, porém, ciscava o chão. Vermelho, com manchas pretas e brancas, porte bonito, já parecia senhor de seus novos domínios. Senhor, sobretudo, das vinte e tantas galinhas que, à sua chegada, se alvoraçaram. 
Só de madrugada Nô retornou a casa. Timidamente, bateu à janela: 
— Sou eu, minha velha. Não tendo resposta, tornou a bater: — Abra, Nó está morto de cansaço. Abra logo, velha! 
Quem apareceu foi Almiro que, candeeiro na mão, olhos pesados de sono, abriu a porta. 
— Entro não, meu filho! E, baixando a voz: — E ela? Muito braba, ainda? 
— Entre logo, pai; estou caindo de sono. 
Olhando por cima dos ombros do rapaz, o velho passou a sala em revista. Depois, puxou ainda o filho pelo braço: 
— Venha aqui fora um instante; quero ter uma conversinha com você. 
Almiro relutou, mas acabou saindo. Dirigiram-se os dois para uma pedra que havia defronte a casa. Nô deu um suspiro, coçou a barba, tossiu. 
— Sabe, meu filho: a vida é uma coisa difícil. 
Em torno, o cricri dos grilos. Um cachorro ladrou num quintal próximo. O cruzeiro do Bom Jesus, lá adiante, todo iluminado. 
— Muito difícil — insistiu. 
De repente, mudando de assunto: 
— Quer saber a verdade, menino? Estou com um medo danado de entrar em casa. 
Ante o silêncio constrangedor de Almiro: 
— Seja amigo de seu pai e fale a verdade: a velha levou a correia pro quarto? Não minta. Um homem nunca deve mentir. Num sussurro: — Pelo menos ao seu pai. 
Levou a mão ao bolso, onde guardava um vidro de xarope — que substituíra por aguardente — e tomou um gole. 
— Ando com uma tosse dos seiscentos. 
Nero veio para o terreiro, deitando-se aos pés de Almiro. 
— Pai — pediu o rapaz — não agüento mais de sono, vamos entrar! 
Nô deu um pigarro: 
— Um pouquinho só, rapaz, deixa primeiro tua mãe agarrar no sono. 
Após um silêncio, descansando a mão no joelho do filho: 
— Um conselho que te dou: nunca queiras saber de mulher. Todas elas são iguais; martirizam a vida de um homem. E é sempre uma despesa a mais. Mulheres foram feitas para jogar dinheiro fora. Como são injustas, santo Deus! É verdade que comprei o galo de briga com o dinheiro dela, não nego. Mas, e o trabalho que vou ter para amestrá-lo? O milho, os acertos para as brigas? Tudo um sacrifício. E para que, vamos, me diga, para quê? Tornou a tossir. — Penso no futuro dos meus e eis a paga que recebo. 
— Pai, vamos entrar — insistiu Almiro, erguendo-se. 
— Está bem, vamos. Mas, eu lhe peço, filho: meta-se entre nós dois quando ela partir de correia pra cima de mim. Afinal de contas, é humilhante um homem como eu levar pisa de mulher. Humilhante! 
Entraram. Almiro à frente, candeeiro na mão; Nó, atrás, olhando para os lados. Houve um instante em que o cachorro esbarrou nas pernas de Nó. Mordendo o lábio para não gritar, o velho deu um pontapé no traseiro do animal. Depois, entre dentes: 
— Estás de combinação com ela, peste? 
O quarto, enfim. Dona dormia, boca aberta, olheiras, rosto amarelecido. 
"Pobre da velha" — pensou Nô. 
No quarto ao lado, Almiro voltou à rede, mas não conseguiu dormir. 
 "Sabe, meu filho? A vida é uma coisa difícil". 
Todas as manhãs o velho Nô era despertado pelo canto do azulão. 
— Vou já, bichinho — dizia ele, saindo da cama, de ceroulas, a camisa de meia deixando à mostra grande parte da barriga cabeluda. 
Velha Dona, já na cozinha, fazendo o café. Da porta dos fundos, Nô olhava o terreiro, onde as galinhas ciscavam. O galo, imponente, desfilava com o peito estufado. A pimenteira vermelha, em rápido crescimento. A latada de chuchu, duas roseiras mirradas, sem rosas. Naquele dia, assobiando, retirava a gaiola do prego, limpava-a, mudava a água e o alpiste, prendia no arame a metade de um maxixe. Como o sol houvesse saído, levou o passarinho para a janela da rua. Almiro estava sentado na pedra, mão no queixo, olhos pregados no chão. 
— Pensando na morte da bezerra? — indagou o velho. 
O rapaz calado. 
— Que há, filho? 
Ainda desta vez não obteve resposta. Almiro pensava na vida e tinha o coração inquieto. Como arranjar emprego para ajudar a mãe nas despesas da casa? Semana atrás procurara seu Dalton Arruda, proprietário da Loja Primavera, pedindo-lhe uma ocupação qualquer. O homem examinara-o com certa desconfiança:
— Você não é filho de Nó? 
Almiro sentiu logo que nada conseguiria. 
— Sou, sim, senhor. 
Dalton Arruda voltou-lhe as costas: 
— Deve ser a mesma bisca que o pai. 
Às vezes pensava em ir embora da cidade. Voltar talvez para Belo Jardim, apesar das lembranças tristes que guardava da infância. Para o Recife, quem sabe? Mas a coragem acabava lhe faltando. Tinha pena de deixar a mãe; quanto ao pai... Bem, fosse lá o que fosse, não podia negar que o amasse. Lamentava o que ele fazia, as suas doideiras, mas sabia que era um bom, nenhuma maldade no coração. 
— Quer vir comigo, filho? 
Almiro respondeu devagar, quase com raiva: 
— Aonde o senhor vai? 
— À casa do Elias, tratar da briga de domingo; vou desafiar o galo dele. 
O azulão abriu o bico. Por um instante, os dois ficaram a ouvi-lo, entretidos. 
— Bichinho de talento, hein, Almiro? 
Dona apareceu à janela para estender uma toalha: 
— Venha tomar café, menino. 
— Quero não, mãe — respondeu Almiro, afastando-se. 
 No seu passo apressado, Norberto de Holanda Cavalcanti já ia lá adiante. Dona tornou ao interior da casa, mão no quadril. 


CHEGARAM AS CHUVAS de junho, pesadas, dia e noite, enchendo as ruas de poças de lama, levando o frio às casas e, especialmente, ao corpo da velha Dona, cada vez mais arriado pela doença. No segundo domingo do mês, um sol ralo, indeciso, rompeu a crosta das nuvens e durante horas ficou enxugando os telhados, também a própria umidade agarrada no ar. Nô foi sentar-se na pedra em frente à casa. Depois de semanas seguidas de aguaceiro, ele sem poder sair, Dona gemendo pelos cantos e o azulão de bico calado, encolhido no poleiro, era bom aquele sol. Tudo parecia novo e iluminado: a rua, o mato rasteiro à beira da linha férrea, mesmo as pessoas que passavam. E, na gaiola, lá estava o azulão como nos seus melhores dias, cantando como nunca, desforrando-se da longa temporada de silêncio e melancolia. 
"A vida é linda" — pensava Nô. 
Mas o que o alegrava realmente, naquele instante, não era o fato de o sol ter voltado. Havia motivo mais sério, sonho acalentado no travesseiro noite após noite, desejo mordendo o coração, ânsia e prazer de esperar. Agora, sim, tinha certeza: novos dias de fartura e bonança voltariam à sua casa. Dona, com dinheiro bastante para ir ao médico; roupa chique para Almiro; ele próprio, Nô, já escolhera algo: uma espreguiçadeira que vira na Loja Primavera, toda forrada com lona listrada de vermelho e azul. O filho surgiu à janela: 
— Mãe chama o senhor para tomar café. 
Nó ergueu a mão num aceno: 
— Venha cá, filho; tenho uma novidade para você. 
— Ande, pai. 
O velho ergueu-se, resmungando. Ao chegar junto ao filho, pôs-lhe a mão no ombro: 
— Espere um pouquinho só. Baixando a voz: — Fechei o negócio com o Idelfonso. 
 — Que Idelfonso? 
— Aquele mulato sanfoneiro que mora lá no Cedro. 
Dona gritou lá de dentro: 
— Vocês não vêm, não? 
— Escuta, Almiro — insistiu Nô. — Idelfonso me vendeu seu canário de briga. É o bichinho mais valente que se possa imaginar. Fez uma pausa e escarrou no chão: — Desta vez fico mesmo rico. 
Almiro deu um muxoxo: 
— O senhor não toma mais jeito não, pai. Já se esqueceu do galo? 
Nô irritou-se: 
— Não me fale daquele filho da puta, não. 
O galo de briga, Nô não gostava nem de pensar nele. Havia sido a maior decepção de sua vida: na primeira disputa que tivera, além de levar uma pisa danada, fugira da rinha como boi ladrão. Um fiasco! Ao anoitecer, regressando a casa, antes mesmo de atravessar a porta — o bicho debaixo do braço — fora gritando para Dona: 
"Mulher, bote este merda na panela!” 
— Mas agora é diferente — disse Nô, com um sorriso forçado. 
Almiro encarava o pai, ele também com vontade de rir: 
— Escute bem o que lhe digo. O senhor vai arranjar mais aborrecimentos para a mãe e para o senhor mesmo. 
— Pode deixar; sei o que estou fazendo. 
E foram para a mesa, onde o café e o cuscuz de milho fumegavam. 


MELHOR GAIOLA não podia existir, pois ele mesmo a fizera, com zelo e carinho. Era de taquara, com as duas portas de frente, de arrasto, testeira e oqueira, segundo a regra e tradição. No fundo, colocara uma tábua de pinho, que havia retirado de um caixote de querosene. Agora, ali estava o canário com pena de pato, prontinho para a luta já combinada, comendo gema de ovo seca, couve (alface tirava o jogo), alpiste e água cristalina, apanhada numa mina perto da pedreira de Alcepino. 
— Só apanha se for safado — disse Nô, olhando com orgulho o bichinho amarelo, irrequieto no poleiro.
Almiro tomava banho de cacimba no fundo do quintal. Dona apareceu, ar espantado: 
— Onde botaram meu despertador? 
Nô, devagar, voltou-se para ela: 
— O despertador que estava no fundo do baú do quarto? Mostrando a maior surpresa: — Como um troço grande daquele pode ter desaparecido assim, sem mais nem menos? Eu mesmo vou procurá-lo. Afastando-se, disse ainda, demonstrando zanga: — Precisa haver mais ordem nesta casa, Dona. 
Almiro vinha se aproximando, enrolado numa toalha: 
— Que foi, mãe? 
— O despertador desapareceu. 
Nô já entrara, dirigindo-se ao quarto. Abriu o baú de um só golpe. Nada de relógio. Revirou trapos, um livro de missa, dois pares de sapatos velhos da mulher, as palhas bentas, secas, da última quaresma. Desistiu, voltando à cozinha, onde Dona e Almiro também procuravam. 
— Não posso compreender. Como desaparece assim um objeto tão grande? Você já viu direito, mulher? Não estará debaixo da cama? E me acontece isso logo hoje, quando preciso estar calmo, porque amanhã é o dia da briga. 
Revistaram a sala, o armário em cima do fogão, reviraram o colchão. Nô estava indignado: 
— Não posso entender; desordem demais nesta casa. 
 Apesar de tudo, foi apanhar o chapéu. Precisava sair. Um encontro marcado na bodega do Viana, onde iria fechar as apostas. Já na porta da rua, virou-se: 
— Quando voltar, quero encontrar esse relógio. Não admito desordem. 
Voltou depois da meia-noite. Todos dormiam. Sem barulho, tirou a roupa e deitou-se. Ao lado, Dona ressonava. Vinha do quarto vizinho o ronco do filho, na rede. Nô estava um pouco tonto e não custou a adormecer. Adormeceu, aliás, embalado pela música de uma serenata que passava na rua, pois era noite de lua cheia. 
Quando o sol despertou no domingo, foi encontrar o velho Nô já de banho tomado na cacimba. Pedindo à mulher que apressasse o café, vestiu-se rapidamente. Irritado, gritou para o filho: 
— Vamos, se avexe, rapaz, estamos atrasados. 
Com seu melhor terno branco — o único decente que possuía — sentou-se diante da mesa, no maior nervosismo do mundo: 
— Vamos, Dona. Bote o café, que o pessoal está esperando. 
Lembrou-se: 
— Ah, encontraram o despertador? 
A mulher não respondeu. 
— Faz mal, não. Amanhã lhe compro outro. 
Dez minutos depois, ele e Almiro estavam a caminho da casa de Gumercino. Manhã bonita, sol por todos os lados, gente passando para a missa das sete no Rosário, engraxates na calçada da pastelaria Americana limpando sapatos domingueiros. Passadas largas, a oqueira suspensa na mão direita, o velho Nô não escondia a emoção. Tinha o rosto vermelho e o suor lhe escorria pela testa. Dia decisivo, este. Já na Baixinha do Capitão loiô, um conhecido tentou abordá-lo. 
— Agora, não posso não! — gritou Nô. — Estou atrasado como os diabos. Apareça lá em casa, logo mais à noite, para comemorar. 
— Comemorar o quê? — perguntou o conhecido. 
Mas o velho Nô já se havia distanciado. Era como se não pudesse adiar por mais tempo o encontro com a fortuna. 
O terreiro da casa de Gumercino já estava cheio de gente que viera assistir a luta. Uns de cócoras, outros de pé, fumando e conversando sobre brigas de canários,contando vantagens, relembrando disputas antigas. Nô foi recebido com gritos de saudação e pilhérias: 
— Vais levar hoje uma presa de oveira — disse Ariostino. 
 — Qual! — retrucou o velho. — Aqui, hoje, vai ter canário apanhado, vão ver. Ofereceram-lhe um gole de cachaça: — Para esfriar os nervos. 
Encostaram as gaiolas e abriram as oqueiras. 
— Agora! — gritou Gumercino. 
Os dois canários atracaram-se, enfurecidos, ante a gritaria dos presentes. Não chegaram, porém, a lutar um minuto: Idelfonso surgiu, inopinadamente, aos berros, exigindo que interrompessem a briga. 
— Está doido? — protestou alguém. 
Indelfonso não deu atenção a nada: aproximou-se e, num arranco, ergueu a gaiola, nela metendo a mão para separar os canários. Depois, segurando o de Nô: 
— O canário não é mais dele não. — e apontava para o velho, rosto congestionado. 
— O quê? — berrou Nô. 
— Isso mesmo. Você não passa de um trapaceiro. Está desfeita a troca. Fique lá com seu despertador, que não trabalha, e eu fico com meu canário de briga. 
Todos caíram na gargalhada, menos o velho Nô, que avançou sobre Idelfonso, tentando arrebatar-lhe o pássaro. 
— Me dê o canário. 
— Dane-se, velho ladrão. 
— Ladrão é sua mãe. Negócio é negócio. Passe pra cá o canário. 
Às gargalhadas, os presentes procuravam conter os dois. Em vão. Fora de si, Nô aplicou uma rasteira em Idelfonsio, que, perdendo o equilíbrio, estatelou-se no chão, enquanto o canário se desvencilhava de sua mão e levantava vôo em direção a uma capoeira defronte. Almiro procurava separá-los: 
— Deixe-se disso, pai. 
Com uma pedra pontuda, Nô bateu duas vezes na cabeça de Idelfonso. O sangue jorrou. 


MADRUGADA ALTA, Almiro escutou o pai dizer, entre gemidos: 
— Os malvados deram cabo de mim, filho meu. 
Voz rouca, arrastada e sofrida que, atravessando as grades da cela, ia direta ao coração do rapaz, sentado na calçada ao pé da parede. Tudo fizera para que soltassem o velho. Pedira ao cabo; fora ao delegado. Respondia a mesma coisa: 
"Este corno velho desta não escapa". 
Mais desumanos ainda: tinham-lhe dado uma pisa de virola. Almiro tapara os ouvidos para não escutar os gritos do pai. Seu desejo era entrar na prisão e passar a faca nos filhos da puta. Mas que podia fazer? Agora, lá estava o pobre, gemendo, contorcendo-se em dores. Outra vez, a voz do velho: 
— Filho? 
— Sim, meu pai. 
— Estou que não me agüento; os sacanas me massacraram. 
— Tenha paciência, pai. Tudo vai acabar bem. 
Mordendo a ponta do lábio, Almiro chorava.O pai era um perdido, mas gostava dele. Por que, em vez de procurarem entender o velho Nô, o espancavam? Ele era aquilo mesmo, jamais mudaria, surra de nada adiantaria. Era apenas ruindade, dureza de coração de quem não sabia perdoar. Ia-se embora de Caruaru. Não queria mais viver numa terra assim. Do contrário, acabaria perdendo a paciência e faria justiça pelas próprias mãos. O que aqueles desgraçados mereciam era uma boa dúzia de facadas. 
— E sua mãe, filho? 
A lembrança da mãe fez crescer o desespero de Almiro. 
— Responda, filho. 
Engolindo um soluço Almiro falou: 
— Responder o que, pai? 
— A pergunta que fiz sobre sua mãe. 
— Mãe está em casa, já sabe de tudo. Foi falar com o prefeito, ele não recebeu. 
— Miseráveis! — gemeu o velho. 
Almiro estava decidido: iria embora da cidade, ali não havia ambiente para ele, sobretudo por causa do pai, de seu constante desregramento. Pensando bem, o velho Nô era um estorvo na vida dele e na da mãe. Mas não negava que o amasse. No fundo, até o admirava. Mais que tudo: era seu pai. De repente, começou a chover. 
— Você ainda está aí, filho? 
— Estou, sim, senhor. 
— Está chovendo, não está? 
— Está, meu pai. 
— Escuta, filho, não vá embora não. Não quero ficar sozinho. Meu corpo dói tanto... 
A chuva molhava a calçada, a folhagem dos ficus-benjumíns e o oitão da cadeia. Fazia frio. 
— Filho, estou sentindo tanta dor! 
Almiro disse que ia em casa apanhar álcool canforado. 
— Vá e não demore, filho; não quero ficar sozinho. 
Dez minutos depois, Almiro estava chegando em casa e viu luz pelas frestas. Antes de bater, percebeu que a porta estava aberta. Diante da imagem de São José, a vela acesa, Dona rezava. 
— Que está fazendo acordada a esta hora da noite, mãe? 
— Rezando pelo pecador. 
— Vim buscar remédio, mãe. 
— Pra quê? 
Almiro demorou a responder: 
— Deram uma pisa nele. 
 A velha suspirou: 
— Miseráveis! 
— Sim, mãe, miseráveis! 
Dona ergueu-se: 
— Você precisa ir embora deste lugar. Vou segunda-feira a Belo Jardim e falo com o doutor João. Ele sempre foi bom para mim, naquele tempo; ele vai arranjar emprego pra você, meu filho! 


 DOIS DIAS DEPOIS, ao ser solto (e durante esse tempo Almiro só arredava pé da calçada da cadeia para ir comer qualquer coisa) o velho Norberto de Holanda Cavalcanti, chegando em casa, foi direto para a cama. Aí permaneceu uma semana, o corpo cheio de equimoses, rosto inchado, cabeça latejando. Dona tinha viajado para Belo Jardim e era o filho quem cuidava dele: levava-lhe a comadre para as necessidades, mudava-lhe a roupa, dava-lhe comida na boca. 
— Me arrasaram, hein, filho? — gemia Nô, de quando em vez, mal conseguindo pronunciar as palavras.
Sozinho, mergulhado numa tristeza que não o largava, olhava a réstia de sol que, atravessando a telha quebrada, incidia sobre a cama. Procurava então colocar sua vida em ordem, pelo menos nos pensamentos. Estava no fim e que fizera dessa vida? Não sabia explicar a razão, mas ouvindo o canto do azulão, lá dentro, vendo os santos de Dona suspenso da parede, todos os objetos da mulher arrumados ali no quarto, sentindo a calma e o silêncio que impregnavam a casa, relembrava suas andanças antigas, as farras, as raparigas que passara no papo, noites de jogatina e bebedeiras e, reconhecia, não sabia bem o que escolher. Estivera sempre certo ou errado? De que lado ficava a verdade — a verdade seria igual para todos ou variava para cada criatura individualmente? 
"Com os diabos!" — pensava. "Acho que não me arrependo não". 
Por outro lado — refletia — seria covardia arrepender-se; estava muito velho, já no fim da vida, não ia agora, a essa altura, perder o caráter. 
— Almiro! — chamou. 
O filho botou a cabeça na porta: 
— Alguma coisa, pai? 
— Venha cá, filho; sente-se aqui ao meu lado, quero lhe falar. 
O rapaz obedeceu. 
— Seja franco, meu filho: que acha você do seu velho pai? Diga, com sinceridade. 
Almiro estava acanhado. 
— Não entendi o que pai quer dizer. 
— É simples, meu filho. Eu perguntava a você: que acha do seu pai, sou bom ou ruim, estou certo ou errado? Vamos, diga. 
Como Almiro continuasse calado, olhos fincados no chão, Nô prosseguiu: 
— Às vezes fico pensando em sua mãe, que nunca foi feliz, coitada. Mas, diga uma coisa: serei eu o culpado pela infelicidade dela? Depende de outro a felicidade de alguém? 
Suspirou fundo e a dor nas costas respondeu forte. O velho engoliu o gemido, parou de falar, olhos postos tristemente na cabeça curvada do filho. Depois: 
— Sinceramente, gostaria que alguém me respondesse. Sei que não levanto desta e não quero levar peso na consciência. 
— Vai ficar bom, pai. 
— Vou não, filho; qualquer coisa me diz que desta não escapo. 
O azulão estava com todo o fogo. Só o canto dele parecia existir agora dentro da casa. 
— Bichinho bom de verdade, hein, filho? 
De repente, um sono invencível pareceu baixar sobre seus olhos. O corpo amoleceu. Nem conseguia mais entreabrir os lábios. Assim mesmo, ainda pôde dizer: 
— Vamos conversar amanhã, filho. Não posso morrer sem essa conversa. Quase sem se fazer ouvir: — Quando eu me for, não quero que pense mal do seu velho pai. 


A CONVERSA DE Nô com Almiro não houve. O velho não despertou daquele sono súbito que o invadira. Sozinho com ele, na manhã seguinte, sem saber que providência tomar, Almiro correu a casa vizinha e pediu a D. Marocas que o ajudasse. A velha foi ver Nô e disse: 
— Estado de coma; vá ao hospital e peça uma ambulância. Procure o doutor Lucena e explique o caso a ele. 
Não permitiram, porém, que o rapaz ficasse ao lado do pai, na enfermaria. Almiro tentou reagir, mas viu que seria tolice. Assim, passou o resto do dia sentado na calçada do hospital, de vez em quando indo lá dentro pedir notícia à enfermeira. Se ao menos pudesse avisar à mãe. Mas, como, para onde escrever? Por outro lado, achava que Dona não tardaria a chegar. Dissera que não passaria mais de dois dias em Belo Jardim, embora já estivesse fora há quase cinco. 
Ao cair da noite, Almiro foi em casa, comeu ligeiro um pedaço de bacalhau cru com farinha, e voltou ao hospital. 
— Como está ele? — indagou da enfermeira. 
— No mesmo. 
Voltou à calçada, onde o cachorro o esperava. Devia ter adormecido, pois ao dar acordo de si, novamente, sentiu que alguém o puxava pelo braço. 
— Acorde, moço. 
— Como? 
Abriu os olhos e viu a enfermeira, que disse: 
— Vá em casa buscar uma roupa para seu pai. E seca: — Morreu. 


AMANHECIA. Seguido de perto pelo cachorro, Almiro voltou à casa. Antes mesmo de entrar, sentiu que sua mãe havia chegado, pois ouviu ruídos na sala da frente. Parou, sem coragem de bater à porta. Todo o corpo tremia, mas nos olhos nem uma lágrima. Queria chorar e não podia. Por fim, fazendo um esforço desesperado, conseguiu chamar: 
— Mãe! 
Não precisou repetir, pois a velha Dona abriu a porta, ainda vestindo a roupa com que viajara; sobre a cadeira de palhinha, a maleta de madeira. 
— De onde está chegando a esta hora, filho? E seu pai? 
Almiro baixou os olhos; por um instante, julgou que ia cair. 
— Vim buscar a roupa de pai. 
— A roupa? 
 Encarou a velha: 
— Ele morreu, mãe. 
Dona não disse nada. Recolheu-se ao quarto e Almiro ouviu o ruído do baú de couro sendo aberto. Daí a alguns minutos estava de volta: 
— Está aqui. 
Depois: 
— Eu vou com você. 
Antes, porém, ajoelhou-se diante da imagem de São José e disse uma oração. Almiro olhava-a. Dona ergueu-se: 
— Seu emprego está arranjado, meu filho. 
— Sim, mãe. 
Mas, pensou: 
"Daqui não arredarei pé. Meu lugar é nesta casa". 
Sim, seu lugar e seu mundo, como fora o de seu pai, o velho Norberto de Holanda Cavalcanti, o velho Nó, simplesmente. 
 — Vamos, mãe? 
— Vamos, meu filho. 
De repente, o azulão pôs-se a cantar. Era um canto como não se fazia ouvir há muito tempo. Instintivamente, mãe e filho se abraçaram e, juntos, começaram a chorar.


José Condé

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