domingo, 15 de maio de 2011

PERFUME DE ROSAS

Maio de 2001. Na última casa do lado direito de uma rua sem saída, deitada numa cama de hospital, estava a minha mãe. Fizemos o que foi possível, mas seu estado era gravíssimo e ela estava condenada. Câncer de pulmão com metástase na coluna. Ela, que sempre foi cheia de energia, que nunca mediu esforços para ajudar os outros, acabou se esquecendo de si mesma e terminou seus dias minguando num leito.
No domingo em que se comemorava o Dia das Mães, não pude ficar com ela. Mas quando cheguei em casa à noite, entrei no quarto que estava mergulhado na penumbra e ao vê-la adormecida, me aproximei devagar e cuidadosamente dei-lhe um beijo carinhoso. Ela abriu os olhos e eu lhe desejei um Feliz Dia das Mães. Ela não disse uma palavra, pois estava dopada de morfina, e voltou a dormir enquanto eu saía do quarto e ficava no sofá da sala, atento ao seu possível chamado.
Era terrível vê-la gritando de dor; como se cada grito fosse um punhal que cravassem no meu corpo. Eu não podia fazer nada. Minha vontade era arrancar a sua dor com as minhas próprias mãos.
Na segunda-feira à tarde, ela queria que a colocássemos no chão. Mas não atendemos ao seu pedido. Estava bastante frio e não convinha arriscar.
No fim da tarde, uma enfermeira, nossa vizinha, veio tirar a sua pressão. Eu estava na sala e vi quando ela abaixou a cabeça e sussurrou pra si mesma:
- Não consigo achar a pressão.
E em seguida, guardou o instrumento, disse que se precisasse de alguma coisa era para chamá-la e foi-se embora, nervosa, consciente de que o pior estava por vir.
Chamamos uma médica, que ao entrar no quarto, encostou a porta e por uma fresta avistei minha mãe chorando. A médica, saiu do quarto e receitou-lhe um antidepressivo. E disse para deixá-la fazer tudo que tivesse vontade, pois sabia que o seu fim estava próximo. O antidepressivo, porém, fez efeito contrário e minha mãe ficou ainda mais agitada.
Por volta das 23 horas, ela foi se acalmando. Eu fiquei sentado à sua cabeceira e o meu olhar voltou-se para a sua mão esquerda, onde estava a sua aliança de casamento. Sem pensar em nada, tirei a aliança do seu dedo e coloquei-a sobre o criado-mudo. E fiquei olhando para a mancha roxa que a quimioterapia havia deixado, e para a palidez da sua face e membros. Seu corpo estava gelado; e eu nem fazia idéia de que ela fosse durar só mais algumas horas.
Naquela mesma semana, sonhei que ela estava toda de branco e caminhando num roseiral. Ela sempre gostou de rosas. E o seu semblante estava muito iluminado, reluzindo como um brilhante e estampando alegria no olhar. E eu acreditava que ela fosse voltar a viver.
Eu havia dormido muito pouco naquelas últimas noites e um enorme cansaço tomou conta de mim, fazendo com que eu fosse me deitar. No dia seguinte acordo com a empregada batendo na porta do meu quarto. Quando abri, ela me disse:
- Sua mãe não está bem.
Corri para o quarto. Ela chamava pelos familiares e entre os nomes que chamou, estava o meu. Fui até ela e ela começou a dar tapas no meu rosto e a olhar para mim, balbuciando palavras desconexas. Não tinha mais o sentido do tato, por isso me dava tapas. E nem da visão: seus olhos verdes estavam vidrados e assemelhavam-se com os olhos de uma boneca. E com certeza já não tinha mais os outros sentidos.
Olhei pra ela e com o coração despedaçado, disse:
- Não quero mais te ver sofrer. Seria melhor que você partisse!
Deitei-me na cama ao lado e fiquei observando-a por um tempo. E adormeci sem me dar conta. De repente sinto uma mão me chacoalhar. É uma vizinha, que diz:
- Julio, acorda, sua mãe está morrendo!
Imediatamente eu saltei da cama para vê-la. Tarde demais. Ela tinha acabado de morrer. Impotente, deixei-me quedar numa cadeira e fiquei ali, inerte, sem forças para chorar, para dar murros na parede... Era como se o chão não estivesse ao alcance dos meus pés.
De repente um forte perfume de rosas invade o quarto. Não havia nenhuma rosa na casa, nem flores, nada. Aproximei o nariz dos seus lábios e aspirei. O cheiro de rosas exalava de minha mãe, que também tinha Rosa no nome. O perfume de rosas estava tão forte que até o odor dos medicamentos que ela havia tomado, havia desaparecido.
Olhei para a sua expressão. Ela sorria e seu semblante reluzia, como no sonho. Depois de um tempo, saí do quarto e fui pro quintal olhar para o céu. Ele estava cinza, feio, triste, naquela manhã de terça feira, dia 15 de maio – exatamente dois dias após o domingo do Dia das Mães. E nesse momento deixei de acreditar em tudo: em Deus, nas pessoas e em mim mesmo.
O velório foi longo. As horas não passavam. E veio muita gente. Muita mesmo. Durante o enterro, caiu uma chuva torrencial. Ao ver o seu caixão entrando no túmulo e os coveiros fechando a gaveta com tijolos e cimento, senti um imenso abandono. Nunca mais a veria, nunca mais ganharia o seu abraço, o seu beijo, o seu afeto, os seus conselhos. E quando os coveiros finalmente fecharam a gaveta e todos se afastavam lentamente, eu fiquei ali, sem saber o que fazer, sem saber o rumo que a minha vida tomaria dali em diante.
Ao chegar do cemitério, fiquei parado diante da porta de casa. Estava criando coragem para entrar. Nunca mais a encontraria à minha espera. Girei a chave no tambor da fechadura e quando abri a maçaneta, o perfume de rosas que exalava da minha mãe, entrou direto pelas minhas narinas e me confortou, porque tinha certeza de que ela estava lá. Deitei no sofá, senti o seu abraço, o seu perfume e adormeci durante três dias consecutivos embalado pelos seus braços, da mesma forma que ela fazia quando eu era criança.


Julio Carrara 

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