sábado, 29 de agosto de 2009

INFLANDO O EGO...

DO BLOG DE NANDA ROVERE SOBRE O PORTA-MALAS

SATYRIANAS 2005
O Porta-Malas
Um homem, interpretado pelo ator Júlio Carrara (integrante dos Satyros), é seqüestrado e colocado no porta-malas do seu carro. Ele entra em desespero, pois não sabe se sairá vivo dali. Tenta a todo custo encontrar o seu celular, mas ao conseguir ligar pra um amigo tem uma ingrata surpresa... O Porta-Malas é uma montagem que trata , infelizmente, de um assunto comum nos dias de hoje e tem o mérito de ser encenada por um ator de talento. O monólogo é produzido pela Cia. das Artes Dramáticas, fundada pelo Júlio, e é dirigido por Thiago Castro Leite .




Sérgio Sálvia Coelho sobre A VIDA NA PRAÇA ROOSEVELT - 24/08/2005

OS SATYROS CONSAGRAM A SUA PRAÇA

Como sonhar com a paisagem na janela, se ela dá para a cinza praça Roosevelt? Quando o grupo Satyros veio se instalar ali, em dezembro de 2000, era um reduto de traficantes e travestis. Hoje é um pólo do novo teatro paulistano. Uma façanha rara para o teatro: não só de ter transformado efetivamente o mundo a partir de seu quintal, mas de tê-lo feito pela compreensão, e não por expulsões cosméticas.

Os excluídos continuam na praça, mas hoje convivem com a elite intelectual, sobem ao palco, repensam seu valor. Foi na praça Roosevelt que Dea Loher, consagrada dramaturga alemã, entendeu o Brasil, ouvindo uma travesti relatar sua paixão por um extraterrestre, ou a fábula de uma moça que é expulsa de casa só com a roupa do corpo e um vestido de noiva, para a partir dele refazer sua vida.

Esse material resultou na “Vida na Praça Roosevelt” ("Das Leben auf der Praça Roosevelt") apresentada na última bienal de São Paulo pelo Thalia Theater, de Hamburgo, e consagrada em seguida por toda a crítica alemã. O grande mérito desse caleidoscópio de histórias duras, que extrai o maravilhoso do miserável, é o de nunca ceder ao folclórico e ao paternalista. Diante da montagem original, na qual grandes atores vociferavam dentro de um anticéptico cubo branco, o público alemão logo entendeu: era da própria Alemanha que Loher falava, usando a praça como espelho deformante.

Curiosamente, quando o dramaturgo e encenador Rodolfo Vázquez estreou seu texto Transex, feito ao mesmo tempo com o mesmo material, o espetáculo soou incômodo, com um realismo canhestro ao mesmo tempo autoindulgente e autodepreciativo, como uma piada interna.

Agora, nesta sua versão do texto de Loher, o Satyros superam seus limites e fazem sua obra prima. É como se as montagens anteriores – que continuam sendo apresentadas no espaço, em ritmo frenético – tivessem se condensado nas paredes do teatro e se sublimado em uma fábula de “doçura trágica”, em meio ao caos e a brutalidade de ser brasileiro.

A solução de Vazquez, óbvia agora que realizada, foi a de devolver o reflexo no espelho. A Roosevelt velha de guerra parece aqui um cabaré brechtiano; os clowns, feitos com leveza e profundidade por Soraya Saíde e Laerte Késsimos, poderiam ser os mesmos que retalham o patrão em Baden-Baden, em um tom que vai da agridoce fábula de Tim Burton à hiperviolência de Sin City.

Os figurinos de Fabiano Machado, a trilha de Ivam Cabral, a maquete de Anne Cerruti, pela precisão e delicadeza, funcionam em qualquer lugar do mundo. Os satyros principais, Ivam Cabral, Alberto Guzik, Soraya Aguilera, Phedra D. Córdoba mantêm a competência habitual de mesclar o irreverente e o trágico, por uma grande gama de tons, mas agora cedem espaço para uma nova geração que desponta.

Nora Toledo e Julio Carrara têm uma atuação marcante, sabendo alternar caricatura e sinceridade. Ângela de Barros se consagra com sua voz doce e cortante, Cléo de Paris e Tatiana Pacor estão inesquecíveis. E mesmo que às vezes a peça mergulhe sem temor no melodrama, o cuidado com detalhes e a dramaturgia vertiginosa tornam a identificação inevitável – pelo distanciamento.

Diante do realismo fantástico, realidade medonha e catártica, o público é devolvido à praça transformado. Não é um espetáculo para se aplaudir de pé, não é uma celebração que varra sob o tapete do sucesso a solidão e a angústia de ser brasileiro. É uma peça que se deve ver urgentemente, e depois voltar para a casa em silêncio, para ficar com os olhos abertos na escuridão.

Quatro estrelas



VALMIR JUNIOR


"A Vida na Praça Roosevelt", da Companhia Os Satyros, é uma peça da qual não se espera muito, mas que, após alguns minutos desde seu começo, atinge a alma de forma que é impossível manter-se impassível.

O mérito se dá pela execução limpa da companhia e pelo apelo do texto da alemã Dea Loher. Loher escreveu para o Thalia Theater de Hamburgo a peça homônima, apresentada no ano passado no Porto Alegre em Cena e na abertura da Bienal de Artes de São Paulo. Porém, a encenação alemã usava o prisma de São Paulo para ecoar sobre a própria Alemanha. Pouco tempo depois, incumbida pelos Satyros de escrever algo que refletisse a Praça Roosevelt da São Paulo real, Dea voltou ao Brasil, mergulhou profundamente no microcosmo da praça (que fica ao lado da Igreja da Consolação) e trouxe um texto poderoso.

A força do espetáculo reside, principalmente, no fato de Os Satyros conhecerem este universo com muita propriedade, exatamente por estarem instalados ali. A encenação conta diversas histórias. Duas delas são o fio condutor do espetáculo: uma conta a amizade das amigas Aurora (Alberto Guzik) e Concha (Ângela Barros). Aurora é uma travesti, que representa o que seu nome diz - uma luz nascente do espetáculo, única que realmente representa um fio de consciência no lugar. Concha trabalha num escritório, uma concha mesmo, por assim dizer, onde são depositadas as lamúrias do chefe, filho do ex-patrão, Vito (Fabiano Machado). Este, por sua vez, procura sentido para a vida medíocre e o encontra na figura de Bingo (Nora Toledo), mulher que imposta a voz para anunciar números no bingo onde trabalha. Ela mesma, Bingo, procura adquirir vida em si mesma ao impostar a voz e assim descobre em Vito um "algo a mais". A outra história condutora é sobre a procura desenfreada do policial Mirador (Ivam Cabral) e de sua mulher (Soraya Aguillera) pelo filho que desapareceu na praça. A angústia do casal, principalmente a de Aguillera, emprestada à personagem da senhora Mirador, é comovente.

A invencionice das passagens de uma história para outra amarra bem o espetáculo, como o buquê que é lançado e pego por outra personagem, ou como as bolas numeradas, pronunciadas ao microfone com voz de anunciadora de aeroporto; temos uma impressão de sonho. Isso acontece ao mesmo tempo em que vemos o desenrolar da história aos nossos olhos. O sonho se revela entremeado com a realidade, como a história de Maria, interpretada por duas atrizes maravilhosas, Cléo de Páris e Tatiana Pacor, tanto pela beleza como pela interpretação. As duas chegam a ser aplaudidas no meio da sessão pela interpretação sincronizadamente intensa. O mesmo pode ser dito de Soraya Saide e Laerte Késsimos, pela versatilidade dos dois, alternando papéis cômicos e dramáticos como se fossem doces nas mãos de uma criança: fácil, fácil de roubar. A platéia agradece pelo roubo de suas atenções.

Entretanto, o espetáculo também possui seus "baixos": certas narrações do Mirador de Ivam Cabral se estendem demais, coisa que não acontece na narração do mesmo Cabral quando ele interpreta a travesti Glória, que se apaixonou por um extraterrestre. Há ainda certo deslocamento de Daniel Tavares e Phedra D. Córdoba. Tavares não dá contraponto aos restantes, deveria explorar mais sua pequena participação. D. Córdoba dá um ar decorativo ao espetáculo. Falta dar-lhe mais. Decoração não dá. O que já não acontece com Júlio Carrara, o mendigo Raimundo, que o tempo todo permanece em cena e pouco se envolve; registrando em crônica o que acontece, Mundo (outro apelido emblemático, de conotação maior) tem papel definido, como uma espécie de alter-ego da autora. Isso o engrandece. Pequenezas à parte, a intensidade do espetáculo é ímpar. Faz-nos acreditar que esse recorte de vidas alheias está ali, a alguns passos de nós, tão perto e tão poético, ao mesmo tempo tão avassalador por suas imagens estupefatas, cheias de símbolos. Uma peruca é trocada de uma cabeça para outra, uma travesti com o pé inchado anda com a leveza de uma bailarina, uma delimitação de corpo está exposta no chão - alguém (ou algo) morreu.

A profundidade acelera enquanto as personagens lutam para alcançar o microfone, desesperadas, na ânsia de conseguirem ser ouvidas por um instante e eis que, quando conseguem, nada falam. Fica pelo meio do caminho e a memória paralisa essas imagens, não deixa nos esquecermos do sonho visto, que agora já foi: acabou o espetáculo.

E assim a vida prossegue naquela praça que ainda, infelizmente, muita gente não conhece.


"A Vida na Praça Roosevelt", com a Companhia Os Satyros. Direção: Rodolfo García Vásquez. Elenco: Alberto Guzik, Ângela Barros, Ivam Cabral, Soraya Aguillera, Cléo de Páris, Tatiana Pacor, Fabiano Machado, Nora Toledo, Laerte Késsimos, Soraya Saide, Júlio Carrara, Phedra D. Córdoba e Daniel Tavares. Onde: Espaço dos Satyros Um. Endereço: Praça Franklin Roosevelt, 214, Consolação, região central. Tel.: 3258-6345. Quando: Sábados, às 21h. Domingos, às 20h30. Ingresso: R$ 20,00 (R$ 5,00 para moradores da Praça Roosevelt). Tempo de peça: 120 min. Em cartaz por tempo indeterminado.


Nenhum comentário:

Postar um comentário