terça-feira, 12 de novembro de 2013

DESMEDIDA

Quando soube que o projeto do novo espetáculo do Coletivo Cê, Desmedida, havia sido aprovado pelo ProAC, confesso que fiquei preocupado. “Será que depois de terem realizado um trabalho de altíssimo nível como Desterro, o Coletivo iria começar a se ‘prostituir’, como muitos o fizeram, levando à cena espetáculos que atendem a determinados editais apenas para conseguir verba e que, no fundo, não lhes dizem nada?” – foi o que pensei de imediato. 
Em seguida, analisei melhor a questão e cheguei à conclusão de que esse resgate histórico poderia ser interessante e ter relevância não só para a equipe envolvida, mas também para a comunidade, simplesmente pelo fato do coletivo deixar a caixa preta do teatro italiano e ir para as ruas, “invadir” as casas dos moradores do bairro, enfrentar possíveis problemas como condições climáticas, intolerância de alguns vizinhos, enfim, todos os perigos que os artistas de rua sofrem. 
Depois de um longo processo, Desmedida estreou. 
A produção está impecável. Cenografia, figurinos, acessórios, maquiagem, iluminação, trilha sonora (executada ao vivo), coreografias, estão muito bem incorporadas à encenação e todos esses elementos tem uma função, uma razão de ser. Não estão ali, como acontece na maioria dos casos, para tentar encobrir a péssima interpretação dos atores, que, aliás, no caso deste espetáculo, de péssima não tem nada. Todos os atores, sem exceção, estão brilhantes em suas diversas personagens e ninguém se sobressai porque todos atingiram o mesmo nível. E isso é muito raro de se ver em espetáculos de grande porte e com um elenco numeroso. 
Quando o espetáculo ganha as ruas, adquire uma característica carnavalesca, com seus diversos carros alegóricos percorrendo todo o sambódromo (aqui, as ruas do bairro) e as personagens vão se desnudando diante de nossos olhos apresentando-nos seus conflitos. 
O espetáculo não segue apenas uma estética. Tem de tudo lá: o épico, o lírico, o dramático, o non sense, a mitologia, o realismo grotesco que nos apresenta os deliciosos bufões sociais por quem tenho imensa empatia, engrandecendo-o mais ainda. 
O primeiro ato de Desmedida, que mostra a trajetória de Duarte, um anarquista que é corrompido pelo capitalismo, na minha visão, é extenso demais. Há muitas sequências interessantes, mas outras precisariam ser revistas, pois se tornam prolixas e, consequentemente, desinteressantes. Necessitaria apenas de uns ajustes para solidificar essas cenas que estão diluídas para que o espetáculo ganhe mais força. Conheço o potencial da equipe e tenho certeza absoluta de que vocês podem fazer isso brincando. 
Depois da enchente, há uma passagem de tempo e somos transportados para o bairro da Chave na atualidade. O segundo ato é um espetáculo à parte. É aí que os atores e o público se divertem, porque eles (re)conhecem as personagens que estão ali. Ao passar pelo bar do Beiço, não sabemos o que é ficção e o que é realidade, devido ao excelente trabalho de composição de tipos pelos atores. Quem vê de fora acredita que foi colocada uma lente de aumento e que personagens assim só existem na ficção. Mas não. Essas criaturas realmente existem e são assim, caricatas por natureza. 
O ponto alto do segundo ato é a cena do rap, com os atores, caracterizados como manos e saltando sobre a cerca de proteção de um campo de futebol. É de arrepiar. 
Enquanto a dramaturgia do segundo ato está alicerçada em bases sólidas, a dramaturgia do primeiro ato foi construída, apesar de ter bons pilares de sustentação, na areia movediça. Acredito que a preocupação com o rigor histórico fez com que o grupo não relaxasse na encenação porque tinham que ser fieis aos fatos. Sugiro que entrem no primeiro ato com o mesmo “descomprometimento” que entram no segundo e esqueçam esse rigor. Aí a coisa se solidifica. 
Quem me conhece sabe que gosto de trabalhar com atores disponíveis. Se tiver que rolar no chão, vai rolar no chão; se tiver que apanhar, vai apanhar... Ninguém tem que ser poupado. São ossos do ofício. Isso me fascina. E os atores do Coletivo Cê são assim, disponíveis. Chegam aos seus limites para depois, ultrapassá-los. 
O que posso dizer desse coletivo? Digo que tive a felicidade de ver alguns integrantes crescer, darem seus primeiros passos como atores ainda crianças e me sinto lisonjeado por vê-los amadurecer como profissionais. 
Sinto por não estar sempre perto de vocês, meus filhos, mas a vida é assim. Os braços do pai terão de se abrir para que o ninho fique maior. E serão os olhos do pai que irão marcar os limites do ninho. Olhos também são colos. Olhos também são ninhos. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o voo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. 
E esse é o destino dos pais: a solidão. Não é solidão de abandono. E nem a solidão de ficar sozinho. É a solidão de ninho que não é mais ninho, pois os ninhos deixam de ser ninhos porque outros ninhos vão ser construídos. 
Nunca se esqueçam das palavras de Rubens Corrêa, daquele artigo que passei para vocês, lá em 1999: “preservem o cálice, domem o cavalo, conservem o fogo e soltem o menino.”


Julio Carrara 

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