terça-feira, 2 de julho de 2013

HERMENEGILDO

Acho que já cansei de falar aqui sobre o problema que tenho quando a morte leva uma pessoa que amo muito. Recentemente, a morte levou embora minha querida Tatiana Belinky. Ainda não superei, continuo muito triste. 
Tenho aqui na minha estante centenas de obras de sua autoria, em livros, em papel, datilografado e mimeografado. É isso mesmo, eu disse, mimeografado. Na década de 50, época em que escrevia os roteiros para a TV Tupi, não existia xerox e Tatiana escrevia suas obras num estêncil, depois passava tudo para o mimeógrafo para em seguida entregar os roteiros para atores, direção e técnica. 
A cada semestre, Tatiana ou Júlio Gouveia, não sei dizer, encadernava esses roteiros num grosso volume de 700 a 800 laudas, referente a um programa que ia ao ar uma vez por semana. É texto que não acaba mais. E isto porque eram quatro programas semanais. Imaginem quantas laudas ela escreveu em 14 anos para estes quatro programas? O que tenho em mãos são apenas 4 volumes do programa Teatro da Juventude, dos anos de 1959 e 1960.
Depois de digitar aproximadamente 50 textos teatrais da Tati para a publicação do livro Tatiana Belinky - Uma Janela para o Mundo, que a Editora Perspectiva lançou em dezembro passado, pedi para ela esses livrões com os roteiros de TV para que eu digitasse. À princípio ela achou bobagem, disse que dava muito trabalho e que talvez não valesse a pena. Mas logo se convenceu e disse que me pagaria por isso. 
- Pagar? - respondi. - Eu é que teria que te pagar por isso. 
Sim, de fato, eu teria de pagá-la, porque à cada obra que digitava, eu aprendia com ela. 
Como poderia deixar que tantas preciosidades permanecessem fechadas numa biblioteca, pegando ácaros, cupins até que o tempo devorasse tudo e não sobrasse nada? As pessoas tem que conhecer isso. Desejo educar meus filhos, netos, bisnetos e todos os meus descendentes com suas obras, além de meus alunos e amigos. 
Toda vez que iria visitá-la, fazia questão de levar alguém comigo. Eu gostaria que todos pudessem conhecer de perto a Tati, não só a escritora, mas o ser humano maravilhoso que ela era. E quem não teve a sorte de conhecê-la, terá a oportunidade de conhecer seu trabalho. 
Infelizmente não consegui mostrar para ela os roteiros que digitei. Já foram 33 do ano de 1959 e quando ela partiu, estava digitando o capítulo 4 de Tom Sawyer. 
Quando voltei de seu enterro, olhava para aqueles livros e não tinha coragem de abri-los. Pensei que fosse sentir uma dor imensa. E por um tempo, não mexi. Fiquei um tempo isolado no interior e quando voltei pro meu apartamento em São Paulo, entediado, perdido, sem saber o que fazer, peguei o seu livro de crônicas Olhos de Ver. Demorei um pouco para abri-lo. E quando comecei a ler as primeiras linhas, parecia que ouvia a sua voz me narrando a história. Aquilo foi me dando um alívio, me fazendo um bem danado. Diferentemente do que havia pensado, ler seus textos não me causou dor. Me senti consolado. E, depois de uma hora, já tinha lido o livro todo. 
Em seguida, abri o arquivo do Tom Sawyer e dei continuidade à digitação. E como isso está sendo prazeroso. Eu já amava os livros quando a conheci... só que hoje, amo muito mais... e onde quer que eu vá, meus livros estarão sempre comigo. 
Se me perguntarem qual é o meu escritor preferido, direi sempre: TATIANA BELINKY. É, sem sombra de dúvida, não uma das melhores escritoras, mas A MELHOR, não só em termos qualitativos, mas quantitativos também. Não conheço ninguém que produziu tanto quanto ela - e olha que conheço muitos escritores. 
Obrigado por tudo, Tati. Por me ensinar tanto e fazer de mim, um ser humano melhor. 
Certas pessoas deveriam ser imortais - e você seria uma delas. Vai ser difícil encontrar outra pessoa como você. 
Aproveito a ocasião para deixar abaixo, uma crônica deliciosa de sua autoria: 


HERMENEGILDO 

Hermenegildo é um imigrante nordestino, com mais de trinta anos de vida, pouco mais de metro e meio de altura e menos de sete anos de idade mental. Não que ele não seja inteligente, não é isso. É apenas que ele não cresceu muito, nem por fora, nem por dentro: ele é uma criança grande, simples e bem-humorada.
Hermenegildo, analfabeto de pai e mãe, é faxineiro em casa de um amigo nosso, que tem uma bela biblioteca. Vai daí, um dia o nosso amigo resolveu mandar Hermenegildo limpar os livros. Entregou-lhe, pois, um pano macio, uma escova, mostrou como se faz para tirar o pó e limpar as lindas capas e lombadas de couro com letras douradas, e acrescentou: 
- Você limpa os livros um de cada vez: tira, limpa e põe de volta no mesmo lugar, do jeito que estava antes. Entendeu? 
Hermenegildo entendera. E aquela tarde inteira, Hermenegildo passou a espanar, escovar e esfregar os livros. À noite, o dono da casa chegou e foi inspecionar o serviço - e ficou danado da vida: os livros estavam limpos, é verdade, mas o resto! O patrão chamou Hermenegildo e passou-lhe uma descompostura:
- É este o serviço que você me fez? O que foi que eu lhe falei? Eu não disse que era para você por os livros no mesmo lugar, do mesmo jeito que estavam antes? E o que foi que você fez? Misturou tudo. Não há um só livro no lugar certo, e ainda por cima, metade está de cabeça para baixo! O que é que você está pensando?! 
E Hermenegildo, exibindo num grande e cândido sorriso os alvos dentes que brilhavam na cara morena: 
- Penso que não tem importância não, doutor: eu não sei ler, mas o senhor sabe. 
Não dá para ralhar com o Hermenegildo. 

 BELINKY, Tatiana. Olhos de Ver. Ed. Moderna, 1989

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