quinta-feira, 17 de junho de 2010

A MORTE BATE À PORTA

PEÇA EM 1 ATO 
de Woody Allen

A ação da peça se passa no quarto de Nat Ackerman, na sua mansão em Kew Gardens. O quarto é atapetado. Há uma cama de casal e uma enorme penteadeira. A mobília e as cortinas são luxuosas. Nas paredes, diversos quadros e um barômetro de não muito bom gosto.
Música suave enquanto a cortina sobe. Nat Ackerman (51 anos, calvo, ligeiramente gordo, proprietário de uma confecção) está deitado na cama, acabando de ler o jornal do dia seguinte. Está de roupão e chinelos, e lê à luz de um pequeno abajur preso no espaldar da cama. Ê quase meia-noite. De repente, ouve-se um barulho estranho e Nat se levanta e vai até a janela. 
NAT: Que diabo está havendo aí?

Subindo desajeitadamente pela janela, aparece uma sombria figura embuçada. O intruso usa um capuz negro e uma roupa justa, também negra. O capuz cobre sua cabeça, mas não seu rosto, o qual aparenta meia-idade e ê branco como gesso. Parece-se um pouco com Nat. Arfa audivelmente, passa uma perna pelo pa rapei to e desaba dentro do quarto.

MORTE  (claro, quem mais podia ser?): Deus do céu, quase quebrei o pescoço!
NAT: (de olhos arregalados): Quem é você?
MORTE: A Morte.
NAT: Quem?
MORTE: A Morte, pô! Escute - posso me sentar? Quase fui para o beleléu. Olhe só como estou tremendo.
NAT: QUEM É VOCÊ?
MORTE: A Morte, que diabo! Pode me arranjar um copo d’água?
NAT: Morte? O que você quer dizer com Morte?
MORTE: Está cego, rapaz? Não está vendo o capuz preto e a cara branca?
NAT: Estou.
MORTE: E hoje é Dia das Bruxas?
NAT:: Não.
MORTE: Então eu só posso ser a Morte. Posso tomar um copo d’água? Mineral com gás, de preferência.
NAT: Escute, se isto for alguma piada...
MORTE: Que piada? Olhe aqui, você não é Nat Ackerman, 57 anos, morador na Pacific Street, 118? Só se eu tiver trocado os endereços. Agüenta aí.
(Cata nos bolsos um cartão, lê-o em voz alta. Confere. )

NAT: O que você quer comigo?
MORTE: O que eu quero? Que pergunta mais idiota!
NAT: Deve haver um engano. Estou em perfeita saúde.
MORTE: Sei, sei. (Olhando em volta.) Bonito lugar, este aqui. Vocês mesmos o decoraram?
NAT:: Contratamos uma decoradora, mas nós também ajudamos.
MORTE (contemplando um quadro na parede): Adoro crianças de olhos esbugalhados.
NAT: Olhe, ainda não quero morrer.
MORTE: Você não quer morrer? Por favor, não comece com isso. Ainda estou zonzo com a subida.
NAT:Qual subida?
MORTE: Subi pela calha. Estava tentando fazer uma entrada sensacional. Vi as janelas abertas, você lendo o jornal e achei que valia a pena tentar. Era só subir pela calha e entrar com um certo - você sabe... (Estala os dedos.) Só que, bem no meio do caminho, prendi o pé numa trepadeira, a calha quebrou, fiquei pendurado por um fio e minha capa começou a rasgar. Agora chega de conversa. Vamos embora. Esta noite está terrível.
NAT: Você quebrou minha calha?
MORTE: Não, não quebrei. Só a entortei um pouco. Você não ouviu quando eu despenquei lá de cima?
NAT: Estava lendo.
MORTE: Devia ser uma leitura muito absorvente. (Pega o jornal que Nat estava lendo.) PIRANHAS FLAGRADAS PUXANDO FUMO. Posso levar isso?
NAT: Ainda não terminei.
MORTE: Olhe... Hmmm... Não sei exatamente como lhe dizer, xará...
NAT: Por que não tocou a campainha lá embaixo?
MORTE: Podia ter feito isto, mas o que você ia achar? Entrando pela janela, pelo menos fica mais teatral. Sacumé? Você nunca leu Fausto?
NAT:O quê?
MORTE: E se você tivesse visitas? Toco a campainha, entro em cena e você está servindo drinques a uma pessoa importante. Com que cara eu fico?
NAT: Olha, meu chapa, já está muito tarde.
MORTE: Também acho. Bem, vamos?
NAT: Vamos pra onde?
MORTE: Pra Morte. Aquele lugar, sabe, né? As Profundas. Lá onde o Judas perdeu as botas. (Olhando para o próprio joelho.) Puxa, me cortei feio. Era só o que faltava: pegar uma gangrena logo no primeiro dia de trabalho.
NAT: Espere um minuto! Preciso de tempo, ainda não estou pronto!
MORTE: Desculpe, mas não dá. Gostaria de ajudar, mas a hora é essa.
NAT:: Mas não pode ser! Acabo de fechar um negócio com 500 butiques!
MORTE: Qual a diferença, um mísero dinheirinho a mais ou a menos?
NAT: É, vocês não se importam! Devem ter todas as despesas pagas, não é???
MORTE: Como é, vamos ou não vamos?
NAT: (olhando-o de alto a baixo): Ainda não acredito que você seja a Morte.
MORTE Por que não? Estava esperando quem? Rock Hudson?
NAT: Não, não é isto.
MORTE: Desculpe se o desapontei.
NAT: Não se desculpe! Sabe, é que sempre achei que você fosse... um pouco mais alto, sei lá...
MORTE: Tenho 1 metro e 60. Está bom para o meu peso.
NAT:: Você se parece um pouco comigo...
MORTE: E com quem queria que eu me parecesse? Afina!, eu sou a sua Morte!
NAT: Me dê mais algum tempo! Talvez mais um dia!
MORTE: Não dá pô.
NAT: Só mais um dia! 24 horas!
MORTE: Para que mais um dia? O rádio disse que vai chover amanhã.
NAT: Será que não podíamos entrar num acordo?
MORTE: Por exemplo?
NAT: Você joga xadrez?
MORTE: Não.
NAT: Mas certa vez eu vi um desenho seu jogando xadrez!
MORTE: Não podia ser eu, porque não jogo xadrez. Biriba, sim.
NAT: Você joga biriba?
MORTE: Se eu jogo biriba? Sou o rei da biriba!
NAT: Então vou te dizer o que vamos fazer...
MORTE: Não venha fazer nenhum trato comigo!
NAT: Vamos jogar biriba. Se você ganhar, eu vou com você agora. Se eu ganhar, você me dá um tempinho - só um dia. Tá fechado?
MORTE: E quem tem tempo para jogar biriba?
NAT: Vamos nessa. Se você é assim tão bom...
MORTE: Olhe, até que eu gostaria...
NAT: Ora, não seja desmancha-prazeres. Uma meia-hora, no máximo.
MORTE: Está bem, mas eu não devia...
NAT:Vou pegar as cartas já, já!
MORTE: Mas só um pouquinho, hem? Pelo menos, vai me relaxar.
NAT: (trazendo cartas, lápis e bloco): Você vai se arrepender.
MORTE: Cale a boca, já estou convencido. Agora dê as cartas e me traga a mineral que eu pedi. Que diabo, um estranho entra em sua casa e você não lhe oferece nada para beliscar!
NAT: Tenho umas batatinhas fritas lá embaixo.
MORTE: Batatinhas fritas! E se fosse o Presidente? Também lhe oferecia batatinhas fritas?
NAT: Mas você não é o Presidente.
MORTE: Dê.

(Nat dá cartas e abre uma trinca.)

NAT: Vamos jogar a um centavo o ponto, para ficar mais interessante?
MORTE: Porquê? Não está interessante que chegue?
Nat: Jogo melhor a dinheiro.
MORTE: Esta bem, Newt.
NAT:  Nat. Nat Ackerman. Não sabe nem meu nome?
MORTE: Newt, Nat, que diferença faz? Estou com dor de cabeça.
NAT: Vai pegar a mesa?
MORTE: Não.
NAT: Então compre.
MORTE (examinando a própria mão): Raios, não tenho nada que preste.
NAT:: Como é o negócio lá?
MORTE: Que negócio?
NAT: A Morte.

Durante todo o diálogo seguinte, eles compram e descartam.

MORTE É como devia ser? Dorme-se o tempo todo.
NAT: Há alguma coisa depois da vida?
MORTE: Ahá, você está guardando os valetes!
NAT: Existe alguma coisa depois da vida?
MORTE (ausente): Você vai ver.
NAT: Ah, quer dizer que vou ver alguma coisa?
MORTE: Bem, acho que eu não devia ter dito a coisa desta maneira. Vamos, compre.
NAT: É difícil arrancar uma resposta de você, hem?
MORTE: Estou jogando biriba.
NAT: Está bem, então jogue?
MORTE: E, enquanto isto estou te dando uma carta depois da outra.
NAT: Não fique olhando o que estou apanhando.
MORTE: Não estou olhando. Qual foi a última carta que eu joguei aí?
NAT: O quatro de espadas. Está pronto para bater?
MORTE: Quem disse que eu estou pronto para bater? Só perguntei qual tinha sido a última carta!
NAT:E eu só perguntei se havia lá alguma coisa para mim ver!
MORTE: Jogue.
NAT:: Me diga alguma coisa. Para onde estamos indo?
MORTE: Que história é essa de nós? Você é quem vai. Bate com a cabeça no chão e pronto.
NAT: Não brinque. Dói muito?
MORTE: Um segundinho só.
NAT: Incrível! (Suspira.) Depois de um contrato com 500 butiques...
MORTE: Ah, finalmente uma canastra!
Nat: Você bateu?
MORTE: Não, só fiz uma canastra.
NAT: Então, quem bate sou eu.
MORTE: Você está brincando,
NAT: Não. Você perdeu. Vou pegar o morto. Sem trocadilho.
MORTE: Merda. E eu achando que você estava guardando os valetes!
NAT: Vamos lá, jogue, enquanto eu examino o morto. Bato com a cabeça no chão, não é isso? Não posso bater com a cabeça no sofá?
MORTE: Não. Jogue.
NAT: Porque não?
MORTE: Porque não! Pô, deixe-me concentrar!
NAT:Mas por que tem que ser no chão? Por que não no sofá?
MORTE: Está bem, vou fazer o possível. Agora, podemos jogar?
NAT: É isso que eu estava dizendo. Você me lembra Moe Leifkowitz. Ele também é teimoso
MORTE: Eu lembro Moe Leifkowitz. Essa é boa! Eu, uma das figuras mais aterrorizantes do universo, lhe lembro Moe Leifkowitz! O que ele faz? Forra os vestidos?
NAT: Coitado de você para forrar vestidos como ele. Leifkowitz ganha 80 mil dólares por ano! Enfeites, guarnições, faz de tudo. Mais uma canastra real.
MORTE O que?
NAT: Mais uma canastra. Vou bater. O que você tem?
MORTE: Futebol.
NAT: Esta eu ganhei.
MORTE Se você não falasse tanto.

Dão as cartas de novo e continuam o jogo.

NAT: O que você quis dizer há pouco quando disse que este era o seu primeiro trabalho?
MORTE: O que você acha?
NAT: Como o que eu acho? Então ninguém morreu antes?
MORTE: Claro que morreram. Só que não fui eu quem os levou.
NAT:; Então quem foi?
MORTE Outros.
NAT: Então há outros?
MORTE: Claro! Cada um vai de um jeito.
NAT:Eu não sabia disto.
MORTE: E por que deveria saber? Quem você pensa que ê?
NAT: Que história ê essa? Então não sou nada?
MORTE: Não exatamente nada. Você é o proprietário de uma confecção. Por que deveria conhecer os mistérios da eternidade?
NAT:Ah, é? Pois fique sabendo que eu ganho muito dinheiro. Formei meus dois filhos. Um trabalha em publicidade, o outro se casou. Esta casa é minha. Tenho um carro do ano. Minha mulher tem o que quer. Não sei quantas empregadas, casaco de pele, férias, o diabo a quatro. Neste exato momento, está viajando, para visitar a irmã. Eu deveria me reunir a ela semana que vem. Então, pensa que eu sou algum duro?
MORTE Está bem, está bem. Não seja tão sensível.
NAT: Quem é sensível?
MORTE: E quem foi que me insultou primeiro?
NAT: Eu te insultei?
MORTE: Você não disse que estava desapontado comigo?
NAT: E o que queria que eu fizesse? Que desse uma festa pela sua chegada?
MORTE: Não é isso. Refiro-me a mim. Disse que eu era nanico, que era isso e aquilo.
NAT: Eu disse que você se parecia comigo. Estava só pensando em voz alta.
MORTE: Está bem, dê logo essas cartas.

Os dois continuam a jogar, enquanto a música diminui e as luzes vão se apagando até a escuridão total. Luzes voltam a se acender aos poucos. Passou-se algum tempo e o jogo acabou. Nat está fazendo as contas.

NAT:: Sessenta e oito... 150... Bem, você perdeu.
MORTE (olhando desanimado para o baralho): Eu sabia que não devia ter descartado aquele nove. Merda.
NAT:Então, nos vemos amanhã!
MORTE: Que história é essa de me ver amanhã?
NAT: Ganhei mais um dia. Agora, deixe-me em paz.
MORTE: Você estava falando sério?
NAT: Tratou, está tratado.
MORTE: Eu sei, mas...
NAT: Não tem mas, nem meio mas. Ganhei 24 horas. Volte amanhã.
MORTE: : Eu não sabia que estávamos jogando a valer tempo.
NAT: Pior pra você. Devia ter prestado atenção.
MORTE: E o que eu vou fazer pelas próximas 24 horas?
NAT:: E o que me importa? O fato é que eu ganhei mais um dia.
MORTE: Mas o que vou fazer? Vagabundear pelas ruas?
NAT:Arranje um hotel e vá ao cinema. Tome uma cerveja. Não crie caso.
MORTE: Some esses pontos de novo.
NAT: E, além disso, você me deve 28 dólares.
MORTE: O quê?
NAT:: É isso aí, bicho. Olhe aqui. Leia.
MORTE (revirando os bolsos): Só tenho uns trocados. Mas não 28 dólares!
NAT:Aceito cheque.
MORTE Mas não tenho conta em bancos!
NAT: (para a platéia): Estão vendo contra quem estou jogando?
MORTE Pode me processar. Como você quer que eu tenha uma conta no banco?
NAT:Está bem, dê-me o que você tiver e fica por isso mesmo.
MORTE: Escute, eu preciso desse dinheiro!
NAT: Pra quê?
MORTE: Que pergunta é esta? Você está indo para o Além!
NAT: E daí?
MORTE: Isso fica longe pra chuchu!
NAT: E daí?
MORTE: E a gasolina? E os pedágios?
NAT Estamos indo de carro???
MORTE: Você vai descobrir. (Agitado.) Olhe aqui. Vou voltar amanhã, e você tem de me dar a chance de ganhar aquele dinheiro de volta. Se não, estou rigorosamente frito.
NAT O que você quiser. Mas vamos dobrar a parada, ou nada. Pode ser até que eu ganhe mais uma semana ou mês. E, do jeito que você joga, talvez até alguns anos.
MORTE: Enquanto isto, não tenho onde cair morto.
NAT Até amanhã.
MORTE (sendo levado até aporta:) Há um bom hotel por aqui? Que diabo, não tenho dinheiro. Vou ter de dormir no parque. (Pega o jornal.)
NAT: Rua! E me devolva o jornal. (Torna-o de volta.)
MORTE (saindo:) Fui um idiota em ter topado aquele jogo. Devia tê-lo pegado e saído.
NAT E cuidado na hora de descer. O tapete está solto no primeiro degrau!

Nesta deixa, ouve-se um barulho terrível. Nat suspira, vai até a mesinha-de-cabeceira e pega o telefone.

NAT: Alô, Moc? Sou eu. Escute. Não sei se isto foi uma brincadeira de mau gosto, mas a Morte esteve aqui, jogamos um buraquinho... Não, a Morte! Em carne e osso. Ou alguém que estava querendo se fazer passar pela Morte. Mas, seja quem for, Moc, que babaca!
DESCE O PANO

Um comentário:

  1. É maravilhoso. A gente chega a conclusão de que além de babaca, a morte é fraca. Vamos continuar e lutar contra ela. Abraços.
    artur massai.

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