quarta-feira, 27 de agosto de 2008

QUE TODO O GRANDE AMOR SÓ É BEM GRANDE SE FOR TRISTE

Mais do que uma obra de ficção, "Castelos de Areia" tem sido pra mim, um reencontro comigo mesmo. Escrever foi a forma que encontrei de expurgar todas as minhas emoções e frustrações. E este texto, sem sombra de dúvida, é o meu preferido – apesar de gostar muito dos anteriores. Talvez pela pureza contida nele, pela nobreza dos sentimentos, elementos raros de se encontrar na minha dramaturgia.
Ainda faltam 17 dias para a estréia e desde o início do processo (há pouco menos de dois meses atrás), estamos mergulhados neste terreno movediço em que as personagens se encontram. Lemos teses sobre Transtorno Bipolar, discutimos as linhas gerais do espetáculo, assistimos a filmes como "Ata-me", "Mr. Jones", "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças", "As Horas", para dominarmos o assunto que estamos abordando.
E nesta reta final, com o espetáculo marcado e na fase do acabamento, tive (por indicação do meu terapeuta) um feliz reencontro com Vinícius de Moraes. Estou relendo seu livro de crônicas e poemas intitulado "Para Viver um Grande Amor" e me deparei com essa crônica que expressa bem o universo interior do protagonista. Segue.

Separação
Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. No íntimo, preferia não tê-lo feito; mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contada na história do amor, que é história do mundo. ELA o olhava com um olhar intenso, onde existia uma incompreensão e um anelo, como a pedir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles.
Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ELE como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ELA. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.
Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de seccionar aqueles dois mundos que eram ELE e ELA. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ELE ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.
Fechou os olhos, tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado, e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela. Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ELE teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes do amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias - um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.
De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde...
Vinícius de Moraes

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