quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A PERSONAGEM CONTEMPORÂNEA, LUIS ALBERTO DE ABREU



Em seu precioso livro de ensaios, "As origens da forma na arte", Herbert Read, afirma a determinada altura que "o poeta dá corpo às formas de coisas desconhecidas". E, se entendi com alguma precisão a delicada relação artista/ mundo/ obra que o autor discute ao longo dos nove ensaios que integram o livro citado, posso afirmar, a partir de Read, que uma das funções do artista e, talvez, a principal, é mergulhar no desconhecido do mundo, no caos das formas imprecisas e de lá extrair uma configuração, uma nova geometria, um corpo orgânico, necessário, atraente ou assustador, e oferecê-lo à humanidade.
Parecem claros os riscos assumidos pelo artista ao cumprir tal função. O mais evidente deles é fracassar miseravelmente: o mundo se apresenta por demais caótico e sua extensão e fragmentação afirmam, por si só, a temeridade da tentativa de extrair dele alguma configuração, alguma geometria que faça sentido. E se, por algum feliz acaso, chegarmos ao final da empreitada nada nos garante que tal "sentido" vai interessar às pessoas ou tocá-las de alguma forma. E também nesse caso toda pretensão e todo esforço terão se revelado inúteis. A impressão que se tem é que a esfinge continua indecifrável e, o que é pior, não sabemos onde ela se encontra e se a encontrarmos talvez não saibamos reconhecê-la.
A imagem da esfinge, numa reflexão que pretende discutir a personagem contemporânea, não poderia ser mais apropriada. Que imagem melhor representa o homem contemporâneo? Sabemos que houve ganhos e perdas nas profundas transformações por que passou a sociedade no último século. Mas quais e em que sentido? Que valores positivos ou negativos poderiam estruturar melhor a personagem contemporânea? Há, de fato, uma personagem contemporânea necessitando ser desvendada ou são suficientes as matrizes que os autores clássicos nos legaram? É possível a criação de novas matrizes ou a nós só resta fazer derivações das matrizes conhecidas?  A intuição pode nos indicar a ocorrência de alterações no conjunto de valores que estruturam a personagem e, por extensão, o próprio homem contemporâneo. A aventura arriscada é tentar identificá-las. 
         As questões que imediatamente se colocam são o que é uma personagem e qual a real necessidade de descobrir sua face contemporânea. A primeira questão parece mais fácil de ser respondida ou, pelo menos, já foi objeto de estudos bastante competentes desde Aristóteles até os nossos dias. Qualquer que seja a definição dada à personagem existe algum consenso entre os estudiosos. Um ponto comum entre eles aproxima a personagem do mundo real e afirma uma nítida relação entre a personagem e a pessoa humana. De alguma forma a personagem imita ações humanas, representa o ser humano. Outro ponto comum, ao contrário, distancia a personagem do mundo real à medida em que a torna elemento de ficção, submetida às necessidades do enredo, "cuja existência obedece às leis particulares que regem o texto"[1].  A própria seleção das ações humanas possíveis que um autor faz para construir uma personagem - segundo a necessidade e a coerência de seu texto - já a distancia do mundo real. A personagem, embora seja tributária desse mundo, é construída segundo leis da ficção e não da vida real.
         A poeta, dramaturga e professora Renata Pallottini nos traz uma precisa definição da personagem: "Personagem seria, isso sim, a imitação, e portanto a recriação dos traços fundamentais de pessoa ou pessoas, traços selecionados pelo poeta segundo seus próprios critérios"[2]. Nos termos "imitação", "recriação", e "próprios critérios" parece-me que já estão contidos tanto o afastamento quanto a proximidade da personagem com o mundo real. Proximidade e afastamento serão retomados ao longo dessa reflexão.
         A segunda questão se afigura bem mais complexa.  O que é "contemporâneo"? A pergunta pode parecer sem sentido se partirmos da constatação óbvia que tudo o que é presente, incluindo aí vida, pessoas, obras e personagens, é também contemporâneo. Um mito babilônico, uma peça grega, uma história medieval, uma tragédia de Shakespeare ou uma peça que se acabou de escrever e encenar e que consiga travar comunicação com o público atual é um fenômeno contemporâneo? Nesse sentido, a contemporaneidade seria determinada pela capacidade de uma obra travar contato com o público de hoje. Ou seja, o público determinaria o que é ou não é contemporâneo. É uma opinião respeitável se não tivesse alguns inconvenientes. O primeiro deles é que a questão "o que é contemporâneo" se revelaria inútil já que absolutamente tudo teria a marca da contemporaneidade. Segundo, que seríamos obrigados a delegar a resposta de uma questão teórica a um pretenso público que determinaria o que seria contemporâneo ou não, o que parece ser um contra-senso: questões teóricas devem ser resolvidas teoricamente e o mundo real "apenas"confirma ou refuta as resoluções alcançadas. Terceiro, e mais importante, é que o próprio público não é, necessariamente, porta-voz da consciência contemporânea. Coisas bem diferentes são viver no presente e ter consciência do presente. A consciência do presente e, mais, a representação do presente é a tarefa mais árdua que se impõe ao artista.
Quando consideramos a personagem contemporânea de forma alguma
excluímos dessa reflexão ou negamos validade à forma como as personagens foram desenvolvidas ao longo da história. A maneira como os gregos, Shakespeare, Molière e outros artistas representaram o ser humano através de suas personagens continuam não só válidas nos dias de hoje como constituem um riquíssimo material para a pesquisa e o estudo. Mas se fossem por si só suficientes, ao artista restaria apenas debruçar-se sobre as obras dos mestres e daí construir suas próprias personagens. O inconveniente seria a arte desvincular-se cada vez mais do real, tornar-se apenas a repetição de um padrão geométrico e perder a proximidade com o mundo e o ser humano reais. O olhar sobre o mundo contemporâneo parece ser, então, de fundamental importância. Mas o que olhar? E o que reconhecer como contemporâneo? Que caminhos poderia o artista trilhar no sentido de descobrir elementos de contemporaneidade para suas personagens?
         Apesar da íntima relação entre pessoa humana e personagem, esta, de maneira alguma, se confunde com retrato ou tem a pretensão de conter em si toda a complexidade do ser humano. Como ser de ficção, como construção humana, representa muito mais uma configuração que o engenho do artista - ou dos artistas, pois a complexidade da configuração não é obra individual - conseguiu estabelecer a partir do ser real. Nesse sentido, uma personagem também poderia ser encarada como o olhar que determinada época ou determinada cultura projeta sobre si mesma. É um espelho que não só reflete mas também complementa o ser humano. Um espelho a partir do qual o ser humano adquire uma consciência de si, mede-se e se estabelece a partir de seus defeitos e virtudes. Digo uma consciência de si porque essa consciência é transitória e, embora conservada, é superada por uma nova consciência, ou seja, uma nova configuração que o artista, ou melhor, os artistas estabelecem, alargando, através de suas personagens, a consciência que o ser humano tem de si mesmo. O desenvolvimento histórico da dramaturgia pode nos auxiliar a entender melhor essa questão.

PERSONAGEM E HISTÓRIA


Muito já se falou sobre a integridade dos personagens gregos. Com integridade queremos dizer que existe nesses personagens uma consonância entre discurso e ação, entre os objetivos que o personagem se propõe alcançar e a trajetória que se impõe, entre o que pensa e o que faz. E não só isso. Os personagens gregos já se apresentam, logo no início da ação, maduros, completos, prontos para a queda, para a tragédia. Devem estar em seu "melhor momento". É também característico nessas personagens, a consciência, ao final de suas trajetórias trágicas, de que foram os próprios erros que determinaram a desgraça. É essa tardia consciência do erro e da origem de suas desventuras que, ao mesmo tempo em que traz sofrimento ao personagem trágico os humaniza, faz com que percebam o próprio descomedimento, até que ponto ultrapassaram as medidas humanas. Ora, o erro ou o mal praticado só podem ser reconhecidos tendo por referência um conjunto de valores aceitos por um clã ou por uma comunidade. Assim, o herói que quase desfrutou poderes divinos se re-insere na comunidade humana, retorna à mesma condição e ao mesmo destino que os outros homens. Mitologicamente, a consciência é uma das formas do herói se humanizar, reparar seu erro e retornar ao convívio entre os homens. Fora isso lhe resta a morte, em geral por traição.
 No Renascimento, Shakespeare não só introduziu profundas modificações no universo das personagens como produziu nova casta delas, desconhecidas no mundo grego. Orestes, influenciado por Electra, sua irmã, vacila apenas por um momento em assassinar sua mãe, Clitemnestra, para vingar a morte do pai, Agamenon. Shakespeare, por sua vez, trabalhando temática semelhante, faz de Hamlet um herói reflexivo e extrai do impasse em que vive a personagem o próprio motivo da ação dramática. Hamlet não é de forma alguma um herói maduro, vertical, pronto para a ação, como um herói grego. Há nele uma perplexidade frente ao destino que se abre que alguns autores já apontaram como a mesma perplexidade vivida pelo homem renascentista, perdido entre a decadência dos valores medievais e as promessas e riscos do Renascimento.  "Romeu e Julieta" e "Otelo" são também representativos de uma casta nova de personagens, os heróis amorosos, que, se por um lado não são inexistentes entre os gregos também não foram protagonistas nem tiveram trajetórias tão elaboradas naquele teatro. Parece claro que os gregos, afirmando-se como cultura guerreira e expansionista, desenvolveram especial predileção em se ver representados pelos chamados heróis guerreiros (além da guerra, a política é uma atribuição desse herói) e pelas heroínas ligadas aos valores do sangue, geração e conservação do clã familiar. Heróis que não tinham como objetivo a organização e desenvolvimento da pólis e heroínas que não tinham em vista a geração e conservação do clã familiar só tiveram plena expressão no teatro com  Shakespeare. É evidente que o peso social que a mulher passa a ter na Europa a partir do século XI vai determinar uma mudança na representação do universo feminino no teatro.
Por outro lado, se nas personagens teatrais gregos o erro é determinado pela própria condição humana e, teoricamente, poderia ser evitado, ou concretamente reparado - desde que o herói tome consciência dele a tempo - em Shakespeare alguns personagens já não são capazes de identificar a raiz de seu erro, como Iago e Ricardo III. O que se percebe em Shakespeare, e se tornará cada vez mais evidente nos séculos subseqüentes, é que se inicia um lento e progressivo distanciamento dos personagens de suas origens, quer seja ela a comunidade humana, os valores familiares ou a própria história pessoal. Processo similar parece acontecer em nível social. O grupo familiar e a comunidade como universos estruturadores do indivíduo na cultura agrária medieval começam gradualmente a perder força dentro da nova ordem social burguesa que emerge. Os tradicionais valores da comunidade e da família vão sendo gradativa e profundamente modificados e substituídos por valores individuais. Não que isso seja em si negativo. A consciência individual tão bem expressa na personagem de Hamlet - o destino que ele tem pela frente é unicamente dele, não está ligado à pólis ou à nação dinamarquesa, ele é um indivíduo descolado da comunidade que lhe deu origem ao contrário de Édipo, Coriolano ou Henrique V, de Shakespeare - abriu para o homem riscos e potencialidades enormes.
Na nova ordem urbana os valores históricos e culturais da comunidade dissolvem-se na confusão de origens dos antigos camponeses, agora novos proletários, que habitam bairros periféricos; a família torna-se apenas uma unidade econômica desprovida de história, e, às vezes, nem isso[3]. Nesse contexto a representação que o ser humano passa a ter de si mesmo através das personagens vai ganhar novos contornos. O século XVIII e XIX foi bastante rico na representação simbólica das grandes transformações econômicas e sociais por que passaram os séculos anteriores e, no teatro, uma nova gama de personagens tentam expressar a visão que as pessoas têm, ou são levadas a ter de si próprias.
É uma época paradoxal. No drama burguês, os valores da personagem são marcadamente individuais (está cada vez mais distante a força que a família e a comunidade representavam ) e  determinada linhagem deles possui ainda alguma força, característica dos personagens clássicos, e tenta moldar o mundo a partir de valores menos universais, os valores da burguesia como extensão de seus próprios valores. Outra linhagem de personagens, originária das massas humanas despossuídas vão dar solidez a um novo gênero: o melodrama. Aqui também os personagens são individualizados, representam a si próprios, mas são desprovidos da grande força que impulsiona os personagens da tragédia e do drama. Se o mundo é o palco da luta para as personagens da tragédia e do drama, esse mesmo mundo no melodrama é um universo opressor, agressivo, violento e estranho. Seus personagens buscam refúgio na família, mas trata-se de uma família frágil, sujeita à destruição pelos vilões que habitam o mundo. Se no drama e na tragédia a moral e as leis devem ser, necessariamente, transgredidas ou reformadas, no melodrama elas são o caminho que leva à virtude. Aqui, a força da família e da comunidade está diluída ou extinguiu-se completamente. É interessante notar que no melodrama a história familiar, para os personagens pobres, perdeu-se. Enquanto na tragédia grega a família do herói tem uma história rica em realizações e que remontam até a ligações ancestrais com divindades e, no drama, percebe-se uma linhagem aristocrática, histórica, o herói melodramático oriundo das baixas camadas não tem história familiar, não tem raiz, não tem referência concreta no mundo.  De maneira semelhante, no mundo real, o proletário perdeu sua própria história. Sua ascendência, desimportante no novo contexto urbano, talvez ainda esteja presente de maneira esparsa nas memórias familiares ou tenha de fato ficado perdida na comunidade camponesa da qual ele foi deslocado em direção a um mundo estranho, complexo, fundado em outros valores que é o da cidade. De qualquer forma, a perda dos liames que o ligam às gerações passadas é só uma questão de tempo.
Separado de seu território real onde se assentava sua história, cultura e tradição e afastado das possibilidades da posse do mundo concreto pela nova ordem burguesa, ao proletário resta apenas o próprio corpo como posse real. O corpo é o território que lhe resta. A esses miseráveis resta, como último reduto, a posse do mundo interior, dos sentimentos e das virtudes. E sentimentos e virtudes em meio a um mundo caótico e pernicioso são o eixo fundamental do melodrama. Não é coincidência que o melodrama tenha ganhado forma e força entre a população pobre e periférica, na França do século XVIII. E talvez seja no melodrama, mais do que em qualquer outro gênero teatral, onde podemos verificar a contraditória relação de proximidade e afastamento do mundo real que, como vimos, caracteriza a personagem. Como representantes do mundo real, do homem do século XVIII, não existe nada mais distanciado do que as personagens do melodrama. O mundo, com sua rede complexa de contradições, inexiste ou é simples moldura para a ação. No entanto, é um gênero que, até hoje, mantém incomparável força de comunicação com o público. Quer queiramos ou não, parece ser, o melodrama, o gênero escolhido pelo grande público como o predileto. Mas é bom não esquecer que o melodrama é apenas um gênero entre outros igualmente respeitáveis e essa predileção possui razões objetivas, históricas e outras, que não cabe aqui discutir.
Essa época (séculos XVIII e século XIX) trouxe ainda outras gamas de personagens extremamente originais. Gerhart Hauptmann, por exemplo, um dos responsáveis pela introdução das tendências naturalistas no teatro alemão, criou no final do século XIX, personagens impressionantemente próximas do mundo real. E E Ibsen introduziu o que poderíamos definir como um terceiro nível na representação das personagens femininas. Enquanto entre os gregos é nítida a predileção por personagens femininas representantes da Grande Mãe, cujo impulso fundamental é gerar e conservar e se, com Shakespeare, a dramaturgia é acrescida das personagens amorosas, a personagem Nora, de Casa de Bonecas, de Ibsen, marca o advento de outra espécie de heroína: a mulher que ultrapassou os limites da maternidade, foi além da trajetória amorosa e vai em busca de uma nova trajetória. Obviamente, foram as novas condições sociais e econômicas, no final do século XIX,  que possibilitaram a fixação do imaginário dessa personagem que, se já era conhecida desde a antiguidade, só no século passado criaram-se  condições para sua aceitação social.

PERSONAGENS DESENRAIZADAS

Até o momento é possível perceber o processo de afastamento das personagens de suas fontes de poder, quer sejam elas deuses, comunidade ou clã. Personagens melodramáticos (e considero o melodrama um gênero tão importante quanto a tragédia, comédia ou drama) são vítimas frágeis de vilões e do azar, inconscientes não somente das fontes do poder como da origem de seus males. O mal no melodrama é abstrato, não é algo que pode ser combatido como no drama ou incorporado como na tragédia. O personagem melodramático é sujeito ao acaso e só o acaso é que pode vir em socorro de sua inocência. Blanche Dubois, Marguerite Gauthier, Willy Loman, James Tyrone, só para citar grandes personagens melodramáticos, são atormentados por intensos sofrimentos morais - e nada indica que o sofrimento de personagens trágicos sejam maiores que os do drama ou do melodrama - sem conseguir chegar à consciência da origem deles. A vida no melodrama se reduz a um jogo de dados onde o acaso é elemento mais importante do que a capacidade de luta do herói.
E, se no melodrama, podemos ver a alienação dos personagens do mundo concreto (geralmente os personagens são só sentimentos e idealização) o processo de afastamento torna-se mais agudo no século XX, alienando o personagem de si próprio. Talvez tenha sido Franz Kafka quem, concretamente, iniciou uma estirpe personagens que poderíamos chamar de "desenraizados". Enquanto os personagens gregos chegam ao final de sua trajetória trágica à consciência de sua culpa e, através dela, à redenção, à restauração da humanidade perdida ou em risco, as personagens kafkanianas são atormentadas por sofrimentos sem causa e, não importa o custo e a dor de sua trajetória, não chegarão à consciência. São personagens de um mundo concreto cuja raiz da crise que pode levá-los à perdição não pode ser encontrada. Joseph K. cumpre uma árdua trajetória para tentar descobrir de que crime é processado, sem sucesso; Gregor Samsa  acorda transformado em uma barata e não é capaz de saber por qual processo isso aconteceu. Diferentemente do melodrama, não existe idealização, virtude ou sentimentos. A realidade brutal, caótica, sem sentido impõe-se sobre o homem que não é capaz de perceber um sentido nisso. O mundo externo, palco de luta e objeto da ação ordenadora dos personagens trágicos e dramáticos ou sistema perigoso e indecifrável para os personagens melodramáticos, como que mergulha dentro do próprio homem e desagrega seu mundo interior. Não importa o esforço humano, as fontes de força externas se voltam contra ele, e de dentro de si mesmo, ele já não recebe nenhuma ajuda.
O mundo que nos pinta Kafka com seus personagens que, em vão, buscam um sentido para o que os aflige, pode parecer suficientemente trágico mas o processo se torna mais radical na segunda metade do século XX. Se é possível perceber, a partir das personagens gregas (caracterizadas pela maturidade e consonância entre discurso e ação) um conflito entre o caráter e o pensamento  que gradativamente vai se aprofundando, em Becket o abismo entre discurso e ação, entre caráter e pensamento assume proporções nunca imaginadas. Em "Esperando Godot", a memória, a faculdade que permite ao ser humano acesso à consciência de si e do mundo está profundamente comprometida. As imagens dançam na mente de Vladimir e Estragon sem se fixar e organizar um sentido, uma continuidade temporal ou lógica. São incapazes de articular um discurso e, se isso fosse possível, seria necessário um imenso esforço para conjugá-lo com a ação. E, se por acaso, isso acontecesse poderiam, então, cumprir uma longa trajetória em busca da consciência para, finalmente, perceber a origem do mal que os aflige. O passado não existe para Vladimir e Estragon. Eles não têm posse do dia anterior. Sentimentos, dores, alegrias, nenhuma lembrança ou sentimento nada se apega a sua mente, a não ser uma necessidade, absolutamente desprovida de sentido que é esperar Godot. São personagens completamente despossuídos de força para ação, incapazes de refazer o momento vivido anteriormente e que tentam desesperadamente dar um sentido às palavras que lhes brotam.
Os personagens de Becket compõem uma dramática e, ao mesmo tempo, profética imagem que só agora torna-se corriqueira em nosso dia a dia. Qual a diferença entre o processo mental de Vladimir e Estragon e de um garoto drogado por crack? Ou de alguém "drogado" por valores e imagens fugazes da indústria cultural ou ainda alguém "drogado" por um narcisismo hedonista sem consciência alguma de destino, clã, comunidade, sem consciência de si próprio, absolutamente incapaz de ordenar impulsos, estabelecer um discurso coerente e uma ação conseqüente?

Kafka e Becket estabeleceram uma excelente matriz para o estudo de elementos de composição da personagem contemporânea. Outros elementos deverão ser buscados na própria realidade. O que nos diz ela? A realidade contemporânea nos diz, e esta é a hipótese na busca da configuração da personagem contemporânea, que a alienação de si mesmo, característica dos personagens trabalhados por Kafka e Becket, talvez tenha se aprofundado ainda mais. Não estão apenas perplexos como Joseph K. nem  apenas com a ansiedade passiva de Vladimir e Estragon. Passaram à ação. Todos os dias, em qualquer lugar do mundo, topamos com consciências fragmentadas, com seres perplexos que, no entanto, agem. Uma ação descontínua, sem objetivo, sem sentido e, como toda ação teatral, dramática, violenta. Vladimir e Estragon cansaram-se de esperar Godot e, sem memória e, conseqüentemente sem valores, puseram-se em movimento e cruzam as ruas, ora tomados de furor, ora de passividade, ora perplexos, ora assaltados por compulsões que não conseguem conter.  Essa é uma das configurações possíveis. Esse enredo é conhecido e, na vida, vemos diariamente a sua representação.
Mas não tratamos, aqui, de enredos e sim de personagem. Nessa medida não nos basta o retratar esse tipo de ação. Isso tem sido feito à exaustão pelo cinema e também pelo teatro que tornam a violência no palco e na tela tão banal quanto no mundo real. Não basta retratar, a personagem é também uma "recriação" como bem apontou Renata Pallottini. O sentido, a geometria, tem de estar em algum lugar e esta é função do artista. A obra do artista não pode ser tão inconsciente quanto as personagens, caso contrário seria inútil. Quais as possibilidades de redenção de personagens desse tipo? Que caminhos podem indicar nesses personagens a restauração da humanidade perdida? Onde está a raiz do erro? Qual o processo mental desses seres de ficção? Essas são algumas das questões que a configuração desse tipo de personagem parece solicitar.
       Outras hipóteses sobre a personagem contemporânea podem e devem ser levantadas além desta, originária das matrizes desenvolvidas por Kafka e Becket. Por outro lado, é bom esclarecer, todas as matrizes anteriores permanecem perfeitamente válidas e operantes. As matrizes dos gregos, de Shakespeare, de Ibsen, Brecht e outros ainda continuam pedindo mais e mais personagens. Mas há também uma matriz contemporânea a ser desvendada em sua geometria e transformada em personagens. Há a necessidade da razão humana dar alguma geometria aos escombros que a intuição indica.


                           



[1] BRAIT,  Beth. A Personagem. São Paulo, Editora Ática, 1985, pág.29.
[2] PALLOTTINI, Renata.Dramaturgia. A construção do personagem. São Paulo, Editora Ática, 1989, pág.5.
[3] Mikhail Bakhtin, em "A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento" ( Ed. Hucitec, São Paulo, 1987 ), aborda de forma bastante interessante aspectos da decadência da noção de corpo social e da afirmação individualismo do período medieval ao século XIX.
Walter Benjamin, em  "O Narrador - Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov" - (in Magia e técnica, arte e política, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1985) analisa a decadência da narrativa em razão das modificações ocorridas na nova configuração econômica e social na Europa a partir do século XVII.


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