quinta-feira, 28 de junho de 2012

SOLIDÃO

Desde que foi concebido pelos seus pais, C. soube que não era bem-vindo. Teve a oportunidade de morrer quando ainda era um feto.
Ao ser abandonada pelo namorado - alguns anos mais velho do que ela e que vivia em bigamia, optou por outra família do que assumir um filho bastardo - sua mãe tentou um aborto.
Tentativa fracassada. C. queria nascer. 
E assim que nasceu, não sentiu o calor daquela que havia lhe dado a luz. Foi rejeitado por sua progenitora, e se não fosse E., uma enfermeira do hospital, que sabendo do desejo de R. uma prima, estéril, em ser mãe, deu um jeito de tirar C. do hospital e entregá-lo à ela, e não a uma instituição que o encaminharia a adoção.
C. foi registrado em outra cidade, e não em sua cidade natal. Em sua certidão de nascimento, consta como "nascido em domicílio".
R, sua mãe adotiva nunca escondeu dele. a sua condição de adotado. Omitia muitos fatos, é verdade, fatos estes que tomou conhecimento já na idade adulta. 
C. cresceu cercado de muito amor por um lado - o de R, sua mãe adotiva - e de repulsa, como se fosse um membro necrosado  que necessitava ser extirpado, por outro - o de J., seu  "pai", ou "ele" ou "velho", como  C. costumava chamá-lo.  
A palavra "pai" ou o nome de J , nunca foi pronunciada por C. O garoto sentia náuseas quando tentava dizer "pai",  parecia que sua boca se enchesse de lama.. Quando precisava comentar a respeito "dele", para R. referia sempre como: "o seu marido".
***
C. saiu de casa para cursar uma faculdade, retornando à sua cidade natal (não a que constava em sua certidão de nascimento). Fez novas amizades, ampliou seus horizontes e sentia-se livre. Estava, de certa forma, cortando o cordão umbilical, que o unia à mãe adotiva, para trilhar o seu próprio caminho.
Durante o terceiro semestre de seu curso, R, acometida por uma grave doença, morreu.
De todos os traumas que enfrentou, esse, talvez, foi o maior. Suportaria tranquilamente, a morte do "pai" ou "velho" ou "ele", pois J. nunca lhe representou nada...  Mas perder a sua mãe foi, sem sombra de dúvida, a pior coisa que lhe aconteceu. 
Junto com ela, foi embora metade do seu equilíbrio, liderança,  vaidade e vontade de viver... E C. deixou de acreditar nas pessoas e em Deus... 
- Se Deus existe mesmo, é um tremendo filho da puta. - dizia.
Completamente desorientado, como um cego perdido em um tiroteio, C. desceu pela primeira vez para o inferno. Bem, inferno, é maneira de dizer. Se ele não acreditava em Deus, não acreditaria no Demônio.
Durante um bom tempo, permaneceu nas trevas. E o que lhe ajudou a superar isso foram os estudos e o trabalho. Mergulhou tanto nisso, que sua vida pessoal deixou de existir. Sua casa agora era o seu local de trabalho. Sua família: os seus colegas.
***
Concluiu a faculdade. Na colação de grau, ninguém de sua "família" compareceu. Olhava para seus colegas formandos, felizes ao lado de seus familiares, e ele ali, completamente só. A alternativa que encontrou foi a de voltar pra casa, sentar-se à mesa, acender uma vela, levantar um brinde para um ser imaginário e comer uma pizza napolitana, cujo sabor foi alterado devido ao sal de suas lágrimas.
- Sim... Amanhã estarei bem. - frase que costumava usar principalmente em dias comemorativos.
Há muitos anos, C. não sabe o que é um almoço de domingo ou de Dia das Mães, Páscoa, Natal e Réveillon com a família... 
"Ah, é! Não tenho família.", lembrava-se. "Minha família são meus amigos. Mas como eles tem suas famílias,   estão comemorando com elas."
Não ligava tanto para algumas datas comemorativas, mas o seu aniversário, não poderia passar em branco. E sempre dava um jeito de trabalhar nesta data, pois, já que não podia contar com sua "família", teria, pelo menos, a companhia dos amigos.
- Posso contar os meus amigos nos dedos de uma mão aleijada.
E esses poucos, muitas vezes, não estavam por perto, quando ele mais precisava. 
***
Na realidade, C. não precisava de muita coisa para ser feliz. Apenas a companhia de alguém ao lado para conversar, ver um filme, almoçar, jantar... Para desejar bom dia, boa noite...  Para lhe dar estímulo...Coisas simples, cotidianas... Afinal de contas, a simplicidade está nos pequenos gestos. 
Algumas vezes sentia-se oco por dentro, como se seus órgãos tivessem se transformado em pedras. Outras vezes, seu coração inchava - devido ao edema - dentro do peito, causando-lhe grande dor, que eram amenizadas com medicamentos, mas o que mais lhe doía mesmo, mais do que qualquer coisa, era o fato de estar só. 
***
Por um momento, C. lembrou-se de um réveillon em que passou sozinho nas areias de Copacabana.  Antagônico, estar só no meio de uma multidão, não é? Mas estava. Depois da queima de fogos, aguardava, ansiosamente, por uma mensagem ou um telefonema de uma pessoa muito especial em sua vida. Um Feliz Ano Novo, que fosse. Mas o celular continuava quieto. Sem mensagens e sem chamadas recebidas. Teve o impulso de ligar, mas não o fez. Esperava que o celular tocasse. Mas não tocou.
Tirou o tênis e caminhou pela beira do mar,  em direção ao Arpoador. A chuva fina chicoteava o seu rosto banhado em lágrimas. Era impossível distinguir o que era lágrima e o que era chuva.
Ao chegar no Arpoador, sentou-se  numa pedra. Depois de um tempo, perdido em seus pensamentos, foi despertado por gemidos. Olhou para o lado e viu, num vão entre as pedras, uma garota trepando alucinadamente com dois caras. C. levantou-se e dirigiu-se para um lugar mais afastado e mais próximo do mar. As ondas rebentavam nas pedras com violência. E C. foi se aproximando cada vez mais, cada vez mais...O que ele tinha a perder se se jogasse lá de cima?
Foi quando ouviu uma voz:
- Não faz isso, brother!
C. olhou para trás e viu um garoto de aproximadamente 20 anos, que o observava, preocupado. C. voltou-se lentamente e quando chegou perto do rapaz, este estendeu-lhe os braços e dando-lhe um forte abraço, disse:
- Feliz Ano Novo, cara!.
Aquilo o confortou. O garoto, que estava com uma turma, antes de se afastar, disse para C:
- Vou ficar de olho em você, hein?!
- Pode ficar tranquilo. - respondeu C.
C. suspirou profundamente, deitou-se na pedra e ficou ali, até o sol nascer.
***
Estando só, C. não tinha estímulo para lutar por aquilo que acreditava. E estava perdendo tudo o que levou anos para conquistar. E sem conseguir recuperá-las, por mais que tentasse.
O espelho tornou-se o seu grande inimigo. Perdera o brilho no olhar, o viço da pele, e estava com a expressão cansada, fatigada... 
Mas o que mais lhe doeu foi encontrar em seus cabelos, alguns fios brancos. 
Faltava pouco para completar 40 anos e não tinha conquistado porra nenhuma (materialmente falando). Esteve sempre com a cabeça nas nuvens, sonhando e quando pôs os pés no chão, ficou em dúvida se valeu a pena fazer tantas renúncias, tantos sacrifícios... pra ter míseros reais no bolso - quando os tinha.
"Mas amanhã é um novo dia" - refletia, esperançoso.
Mas, entrava ano, saía ano, as coisas não melhoravam. Pelo contrário, pioravam cada vez mais.
Sentia-se aprisionado em uma camisa-de-força e como se alguém o tivesse lançado ao mar. E, asfixiado, não conseguia gritar, pedir ajuda. Estava novamente nas profundezas, esperando que uma mão amiga o resgatasse.
E, apesar de asfixiado, não conseguia morrer. Até para morrer, ele precisaria lutar. E não tinha mais forças para isso. C. entrara, sim, em agonia, e conforme os dias passavam, morria pouco a pouco... Gradativamente. Uma morte lenta e dolorida.

Julio Carrara 

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