sexta-feira, 29 de junho de 2012

CAPITÃES DA AREIA

Foi o primeiro livro que li de Jorge Amado. E dois anos depois, já tinha lido todas as suas obras. Mas, Capitães da Areia é o que está mais fresco na minha memória. Sabe aquele livro que você nunca esquece? Pois é. Esse é um deles. Eu o li quando tinha 12 anos, e reli há uns dois anos atrás. 
Estava me preparando para dormir e, enquanto percorria os olhos pela minha estante de livros, - sempre faço isso antes de dormir -  meus olhos se fixaram em Capitães da Areia.
Tirei-o da estante, folheei algumas páginas e ao ver uma página com uma fitinha marcando-a, parei para ler aquele trecho.
Sem sombra de dúvida, é um trecho magnífico, repleto de poesia. Peço licença a Jorge Amado, aos seus herdeiros e às editoras, para publicar esse trecho. Fiz questão de colocar o texto aqui para que meus filhos, netos, bisnetos e tataranetos, possam ler isso um dia e se emocionar, como eu me emocionei.
Obrigado, Jorge. 
Segue o texto abaixo:


DORA, ESPOSA
O cachorro late a lua na areia. Sem-Pernas sai do trapiche, acompanha Don’Aninha através do areal. Ela disse que a febre não tardaria a ir embora. Pirulito sai também, vai chamar o padre José Pedro. Tem confiança no padre, ele pode saber um remédio.
Dentro do trapiche os Capitães da Areia estão silenciosos. Dora pediu que eles fossem dormir. Se deitaram pelo chão, mas são raros os que dormem. Na paz imensa da noite pensam na febre que consome Dora. Ela beijou Zé Fuinha, mandou que ele fosse dormir. Ele não compreende bem. Sabe que ela está doente, mas não pensa um momento que ela o poderá abandonar. Mas os Capitães da Areia temem que isso aconteça. Então ficarão novamente sem mãe, sem irmã, sem noiva.
Agora só João Grande e Pedro Bala estão a seu lado. O negro sorri, mas Dora sabe que o sorriso dele é forçado, é um sorriso para a animar, um sorriso arrancado à força da tristeza que o negro sente.
Pedro Bala segura sua mão. Mais retirado, Professor está dobrado sobre si mesmo, a cabeça enterrada nas mãos.
Dora diz:
– Pedro?
– Que é?
– Chegue aqui.
Ele se aproxima. A voz dela é um fio de voz. Pedro fala com carinho:
– Tu quer alguma coisa?
– Tu gosta de mim?
– Tu bem sabe...
– Deita aqui.
Pedro deita ao seu lado. João Grande se afasta, chega para perto de Professor. Mas não conversam, ficam entregues à sua tristeza. No entanto é uma noite de paz que envolve o trapiche. E a paz da noite está também nos olhos doentes de Dora.
– Mais perto...
Ele se chega mais, os corpos estão juntos. Ela toma a mão dele, leva ao seu peito.Arde de febre. A mão de Pedro está sobre seu seio de menina. Ela faz com que ele a acaricie, diz:
– Tu sabe que já sou moça?
A mão dele pousada nos seus seios, os corpos juntos. Uma grande paz nos olhos dela:
– Foi no orfanato... Agora posso ser tua mulher.
Ele a olha espantado:
– Não, que tu tá doente...
– Antes de eu morrer. Vem...
– Tu não vai morrer.
– Se tu vier, não.
Se abraçam. O desejo é abrupto e terrível. Pedro não a quer magoar, mas ela não mostra sinais de dor. Uma grande paz em todo seu ser.
– Tu é minha agora fala ele com voz agitada.
Ela parecia não sentir a dor da posse. Seu rosto acendido pela febre se enche de alegria. Agora a paz é só da noite, com Dora está a alegria. Os corpos se desunem.
Dora murmura:
– É bom... Sou tua mulher.
Ele a beija. A paz voltou ao rosto dela. Fita Pedro Bala com amor.
– Agora vou dormir – diz.
Deita ao lado dela, segura sua mão ardente. Esposa.
A paz da noite envolve os esposos. O amor é sempre doce e bom, mesmo quando a morte está próxima. Os corpos não se balançam mais no ritmo do amor. Mas nos corações dos dois meninos não há mais nenhum medo. Somente paz, a paz da noite da Bahia.
Na madrugada, Pedro põe a mão na testa de Dora. Fria. Não tem mais pulso, o coração não bate mais. O seu grito atravessa o trapiche, desperta os meninos. João Grande a olha de olhos abertos. Diz a Pedro Bala:
– Tu não devia ter feito...
– Foi ela que quis – explica e sai para não rebentar em soluços.
Professor se chega, fica olhando. Não tem coragem de tocar no corpo dela. Mas sente que para ele a vida do trapiche acabou, não lhe resta mais nada que fazer ali.
Pirulito entra com o padre José Pedro. O padre pega no pulso de Dora, bota a mão na testa:
– Está morta.
Inicia uma oração. E quase todos rezam em voz alta.
– Padre nosso que estais no céu...
Pedro Bala se lembra das rezas à noite no reformatório. Seus ombros se encolhem, tapa os ouvidos. Volta-se, vê o corpo de Dora. Pirulito pôs uma flor roxa entre seus dedos. Pedro Bala rompe em soluços.

É de cortar o coração, não é?

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